Fernanda Torres e os alienígenas

Fernanda Torres e os alienígenas

Lia Calder e Thais Françoso: "A sétima arte, assim como as demais manifestações culturais, revelam o retrato do seu tempo"

Por Lia Calder e Thais Françoso

Em frente a uma sala de cinema, duas mulheres escolhem o que irão assistir. Uma delas tem uma regra: um filme deve ter três requisitos: (1) no mínimo duas mulheres com nomes que (2) mantenham diálogo (3) sobre algum assunto além de uma figura masculina. O último filme aprovado, diz a criadora, era sobre alienígenas.

Essa é uma das edições da tirinha Dykes to Watch Out For, da cartunista Alison Bechdel, publicada em 1985. A regra da personagem é usada até hoje para discutir o papel social das mulheres por meio da representação das pessoas do gênero feminino no cinema.

A sétima arte, assim como as demais manifestações culturais, revelam o retrato do seu tempo. Filmes são um registro da sociedade e do zeitgeist.

No sentido contrário, também moldam ideias sobre grupos sociais e discussões que compõem o imaginário popular.

A reflexão sobre a forma pela qual as mulheres e outros grupos marginalizados são representados nas plataformas audiovisuais é o foco do trabalho do Instituto Geena Davis. Fundado em 2004 pela atriz e ativista que dá nome à organização, o Instituto entende o impacto destas representações no tal imaginário popular e realiza pesquisas sobre o que está em frente e atrás das câmeras.

Em uma pesquisa sobre maternidade, por exemplo, o Instituto constatou que 9 em cada 10 provedores de uma família heterossexual, em filmes e séries de TV, são representados por homens — um retrato completamente descolado da realidade.

No Brasil, por exemplo, 50% dos lares são chefiados por mulheres. Nas cenas domésticas, os cuidados com crianças e lares não são colocados em perspectiva — as crianças aparecem vestidas, limpas e alimentadas. A casa é organizada sem que se evidencie o trabalho que isso requer. Na vida real, como já trouxemos aqui, este trabalho invisibilizado, subvalorizado e não remunerado recai, em geral, sobre as mulheres.

Na premiação do Globo de Ouro de 2015, Reese Witherspoon relembrou outro lugar comum e falacioso da ficção: em momentos de crise, as mulheres normalmente se dirigem a um homem com a pergunta “o que faremos agora?” reforçando o estereótipo de fragilidade e incapacidade.

Dez anos depois, na mesma premiação, temos o reconhecimento de Fernanda Torres por sua incrível performance em Ainda Estou Aqui — filme sobre a vida de Eunice Paiva, mulher real, que, frente ao momento de crise causado pelos crimes cometidos pelo Estado Brasileiro durante a ditadura militar não apenas defendeu a sua família, mas também a vida e memória de vítimas desse regime, a democracia brasileira e os direitos de povos indígenas.

E o fez sorrindo.

Está aí uma maravilhosa alternativa ao filme de alienígenas para a personagem de Bechdel.