O mito da mulher universal
Por Lia Calder e Thais Françoso
Nas discussões sobre igualdade de gênero nas organizações, a questão da interseccionalidade é constantemente suprimida. É como se “gênero” fosse um monólito: um grande e único bloco que dá conta de representar todas as mulheres.
A multiartista portuguesa Grada Kilomba nos ajuda a compreender esta ideia com a seguinte ilustração: “Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa”. Agora coloque a partir daqui os demais marcadores, além do racial, como deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, idade e outros tantos. Esta segregação pode chegar ao ponto de total invisibilidade.
Ao mesmo tempo que o debate sobre mulheres coloca em xeque a hegemonia masculina nos espaços de poder e na concentração de acessos, benefícios e oportunidades, tal avanço, por vezes, abafa as discussões sobre os privilégios a partir de características como as já citadas. Isso faz com que dentro da luta pela igualdade de gênero algumas mulheres sejam mais privilegiadas do que outras. Quem nunca ouviu no ambiente corporativo “mas além de mulher precisa ser preta?”.
Nas organizações, por exemplo, programas de Diversidade e Inclusão acabam por privilegiar mulheres brancas. Isso porque, em geral, não se aplica uma “lente dupla” de gênero e raça. Resultado? São as mulheres brancas, como nós – as autoras deste texto –, as que têm maior êxito em galgar posições mais altas nas empresas. Esse é um dos achados do levantamento do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert). Entre as 128 empresas pesquisadas, 63% declararam ter mulheres brancas em posições executivas. Apenas 30% têm executivas negras nos mesmos cargos. Vale lembrar que segundo o último Relatório de Transparência Salarial, mulheres negras são o grupo demográfico com menores salários. Em seguida estão homens negros, mulheres brancas e, por fim, homens brancos.
Mulheres com deficiência, por sua vez, recebem 34% a menos do que mulheres sem deficiência e sua representatividade não passa de 1% na liderança, segundo a PNAD Contínua, pesquisa do IBGE. As barreiras colocadas nos acesso à educação e ao mercado de trabalho por uma sociedade capacitista se agravam quando sobrepostas ao machismo.
Dentro do recorte de gênero, o desemprego é maior entre mulheres LGBTQIAPN+ do que entre as cisheteronormativas, segundo a pesquisa Panorama das Mulheres no Mercado de Trabalho 2023. A principal razão? O preconceito.
A lente de gênero, como temos colocado aqui nas últimas semanas, é essencial para uma sociedade mais justa, segura e próspera, mas, para ser efetiva, ela precisa ser acompanhada das perspectivas dos demais marcadores sociais.