Comportamento

Até onde vai a moda dos corpos livres?

Tendência conhecida como naked dress volta a ocupar passarelas e tapetes vermelhos. Mamilos à mostra, lingeries aparentes e peças com estampas que simulam a nudez retornam em momento de libertação da corporalidade feminina

Crédito: Foc Kan/WireImage

Paris, França: atriz Isis Valverde participa de desfile de outono-inverno 2023-2024 da Christian Dior (Crédito: Foc Kan/WireImage)

Por Ana Mosquera

Não há nada de novo sob os vestidos e peças que vestem modelos, celebridades e it girls (as garotas que ditam tendências) do mundo todo. Nas últimas semanas de moda, premières e bailes de gala, entretanto, mostraram-se mais aparentes os visuais que se enquadram no tal naked dress (em tradução livre, vestido pelado).

Os que mais se destacam nos holofotes são mesmo vestidos: feitos de tecidos leves e transparentes, crochê ou tricô, com tramas de cristais, rendas, franjas e outros adereços.

O conceito por trás da expressão é mais amplo. Lingeries à mostra, hot pants em pleno inverno londrino (como a influenciadora Isa Scherer não para de desfilar) e outros itens que por vezes escancaram a pele também integram a tendência.

“O uso de roupas que foram criadas com a intenção de serem íntimas configura muito uma aceitação do corpo”, fala Juliana Lopes, consultora de Comunicação de Moda e coordenadora de cursos de moda no IED SP.

Influenciada pelo comportamento social e espírito do tempo, seu retorno tem relação com o aprisionamento da pandemia, mas também com a discussão anterior da liberdade do corpo feminino.

Lilyan Berlim, doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Laboratório de Economia Criativa ESPM e responsável pelas disciplinas de luxo na ESPM/RJ, lembra do movimento free the nipple (liberte o mamilo, em português), de 2014. “No rastro da campanha, vemos um crescente desse protesto crítico e ético com relação ao corpo feminino que ganha uma forma estética muito bonita. ‘Eu não estou nua, mas olha aqui o meu corpo.’”

Ela lembra que a ode à transparência vem da Antiguidade: enquanto no Egito, o uso dos tecidos estava associado ao poder e era permitido apenas às elites, em Roma as mulheres molhavam as roupas de lã para que grudassem no corpo, como as estátuas.

Por muito tempo reprimido, é com Yves Saint Laurent, no final da década de 1960, que o naked retorna, com as blusas transparentes combinando com o auge das revoluções cultural, sexual, feminista. “Ele falava dos preconceitos com relação ao corpo feminino, tanto o velado quanto o andrógino, de modo que propôs o smoking para mulheres.”

Sessenta anos depois, a liberdade do corpo feminino, assim como o feminismo, nunca foram temas tão abordados na sociedade, da literatura ao cinema.

É na première do filme Barbie, dirigido por Greta Gerwig e lançado em julho, inclusive, que a cantora Dua Lipa (também personagem da produção) aparece brilhando em um vestido longo de malha prateada.

O naked dress vai muito além da nudez e a simples decisão das mulheres em aderir ou não à moda tem cunho político. “Uma macrotendência é a discussão sobre os corpos. Nunca se falou tanto sobre corporalidade”, complementa Lilyan.

Se chegará às ruas na sua forma mais polêmica, com mamilos à mostra, é difícil dizer. “Depende da rua. Se estou em uma entrada de passarela, que está preparada para uma linguagem de moda, no Hemisfério Norte ou aqui. Ainda é um ‘dress code’ dentro de um ambiente controlado”, diz Juliana.

Rihanna usa vestido de trama fina de Swarovski em premiação (Crédito:Divulgação)

Dua Lipa veste look de malha de cristal da Bottega Veneta na estreia da Barbie (Crédito:Christopher Polk)

Kendall Jenner no British Fashion Awards, em Londres (Crédito:Daniel Leal)

Tendência a gosto

“A base da indústria da moda é o gosto. Não significa que uma mulher que não queira usar o naked dress esteja mal consigo. As mulheres estão bancando os próprios corpos. É muito mais uma questão de autonomia. É que há muitas tendências e as passarelas são prova disso. O estilo que tem na São Paulo Fashion Week, no Brasil, é diferente do de Milão”, continua Juliana.

Dentro das fronteiras do próprio País é possível notar as diferenças, como complementa Lilyan. “Conforme você avança para o interior, encontra resistência com relação a esse corpo aparente.”

A chegada das roupas às ruas não é repentina, muito menos tem trajetória linear. “A origem das peças vem com a lingerie, mas elas mudam com os novos padrões e a tecnologia, os tecidos. Esse tipo de roupa que parece sleep dress, a camisola, foi criado para ficar por baixo. A partir do momento em que começo a usá-lo nas ruas, ganho segurança e mais vontade de mostrá-lo”, diz Juliana.

Outro tipo de “vestido pelado” é o que imita o corpo nu, como o modelo desenvolvido pelo espanhol Sergio Castaño Peña e desfilado por Anitta. Em um País mais acostumado a mostrar o corpo, sobretudo pelas questões climáticas, a vestimenta que simula a nudez ganha tom de brincadeira.

“Quando tem um vestido que imita o corpo é uma ironia. Também tem a ver com as mulheres quererem brincar com a moda. Ela é diversão, uma cena que nós criamos”, comenta Juliana.

Da história da moda, ela recorda tendências mais ousadas inspiradas não nas passarelas, mas nos palcos, e que ganharam a população. “Nos anos 1950, tivemos as pin-ups, na década de 1980, um visual mais punk, com Madonna e Cindy Lauper. As mulheres começaram a usar sutiã como look porque a Madonna propôs.”

O debate sobre a liberdade dos corpos femininos está aberto e a moda do naked dress, seja com intenção de protesto, sensualidade ou brincadeira, vem para mostrar que a mulher tem direito de usar o que quiser. “Há um debate sobre identidades, sobre as formas que os corpos ganham ao longo da vida. E a moda pode ser usada como ferramenta de poder e contra o preconceito, pois ela confronta de forma ética e estética uma hegemonia de padrão de beleza”, diz Lilyan.

Anitta veste peça que simula corpo nu, do espanhol Sergio Castaño Peña. Fã do transparente, a cantora Beyoncé usou vestido de trama brilhante da Givenchy no Met Gala (abaixo) (Crédito:Divulgação)
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