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Entenda por que o extremismo de direita se consolida no mundo todo

Vitórias na Holanda e na Argentina confirmam que populistas radicais de direita se consolidaram em todas as regiões, assimilados pela política convencional e embalados pela insegurança econômica. O sucesso de Donald Trump em voltar à Casa Branca será determinante para frear — ou acelerar — a tendência pelo mundo

Crédito: Andrew Caballero Reynolds

Donald Trump fala a apoiadores na Dakota do Sul, dia 23/9: primárias começam dia 15 de janeiro (Crédito: Andrew Caballero Reynolds)

Por Marcos Strecker

RESUMO

• Partidos de extrema direita ganham posições em governos e cadeiras nos parlamentos da Europa
• Milei, na Argentina, e de Geert Wilders, na Holanda, provam que forças políticas tradicionais estão cambaleantes
• É certo que muitos, depois de se elegerem, moderam o discurso e buscam governo mais pragmático
• Analistas veem conjunção de fatores para o crescimento dos conservadores desde a crise de 2008
• Nos últimos anos, dizem, a rejeição às pautas identitárias e à corrupção empurrou muita gente para a direita

As vitórias recentes de Javier Milei, na Argentina, e de Geert Wilders, na Holanda, não são apenas surpreendentes reviravoltas em países que há anos são governados por forças políticas tradicionais. Mostram que o populismo de direita se torna hegemônico, apesar de Donald Trump ter perdido há três anos o assento mais poderoso do mundo, na Casa Branca — para onde pode voltar no ano que vem.

O argentino venceu as eleições no dia 18 prometendo “tornar a Argentina grande novamente”. É o mesmo lema usado por Trump (“make America great again”), que foi um dos primeiros a comemorar seu triunfo. O holandês teve uma vitória estrondosa após passar décadas fomentando o ódio e pregando contra os imigrantes. Além das ideias radicais ou simplesmente ilegais, seu partido defende o “Nexit”, a versão local do Brexit, de desligamento da União Europeia. Também deseja abandonar o euro.

Esses são apenas os sucessos mais recentes desse populismo, e os exemplos se multiplicam.
Em outubro do ano passado, pela primeira vez desde a Segunda Guerra, a Itália colocou no poder um partido neofascista, o Irmãos da Itália, da premiê Giorgia Meloni.
Uma das primeiras líderes a comemorar a vitória de Geert Wilders, ao seu lado, foi Marine Le Pen, que está cada vez mais perto do poder na França. Ela obteve no ano passado 2,5 milhões de votos a mais do que havia obtido cinco anos antes na disputa pela presidência da França. Foi batida por Emmanuel Macron, que consegue liderar o centro após o desmantelamento do Partido Socialista e do conservadorismo gaullista. Mas ele não tem sucessores à vista, o que aumenta a chance de Le Pen (ou um aliado) levar a segunda maior economia do bloco europeu para a extrema-direita nos próximos anos.
• O húngaro Viktor Orbán, a voz mais estridente da extrema- direita no bloco europeu, conquistou no ano passado seu quarto mandato consecutivo.
A legenda de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) cresceu na Alemanha em eleições regionais e já ocupa o segundo lugar na preferência nacional — um estudo recente da Universidade de Bielefeld mostra que um em cada 12 alemães tem visão de extrema-direita.
• A Espanha era um dos poucos países europeus que não tinha representantes da ultradireita no Parlamento, o que era conhecido como “exceção espanhola”, mas essa realidade já mudou. Apesar de ter perdido cadeiras nas eleições de julho passado (de 52 para 33), a legenda extremista VOX permanece como força decisiva e quase chegou ao governo.
Na Polônia, a legenda da extrema- direita do presidente Andrzej Duda foi a mais votada em outubro (35,4% dos votos), e apenas por causa do desempenho dos partidos de oposição, que juntos conquistaram maioria, deve ficar fora do novo governo.
• O Chega foi o terceiro partido mais votado nas eleições legislativas em Portugal no ano passado.
Na Suécia e na Finlândia, legendas de extrema-direita foram as segundas mais votados e passaram a integrar os respectivos governos recentemente.

O holandês Geert Wilders: líder extremista obteve maioria no dia 23 (Crédito:Sem Van Der Wal)

Integração ao mainstream

Analistas acham que essa onda extremista avançaria decisivamente em 2024, quando a ultradireita pode crescer nas eleições para o Parlamento Europeu. “Por toda Europa nós vemos o mesmo vento da direita soprando”, afirmou o extremista de direita belga Tom Van Grieken, após a vitória de seu aliado na Holanda.

Não é apenas a face beligerante desse populismo que se expande. Essas forças conquistaram espaço e passaram a influenciar a política da maioria dos países europeus. Não se trata mais de manifestantes com uniformes neonazistas ou de visual skinhead. Hoje se incorporaram à política convencional e circulam nos corredores do poder com terno e gravata.

Manifestantes em Apeldoorn (Holanda) protestam contra muçulmanos (Crédito:Jerry Lampen / ANP / AFP)

Na Argentina, a vitória de Milei animou especialmente os bolsonaristas, que estavam nas cordas depois do fracasso nas eleições do ano passado. Enxergaram nisso um sinal de que a extrema-direita permanece viva no Brasil.

Mas os primeiros sinais do novo presidente argentino também mostram que o sistema de pesos e contrapesos das democracias ainda consegue frear os impulsos mais radicais.

Para decepção de Jair Bolsonaro, Milei acenou em seguida para Lula e o governo chinês, que foram seus alvos prioritários na campanha, e se uniu à centro-direita para formar o governo.

O terremoto político causado em 2016 com o Brexit hoje parece ser uma pedra no caminho do conservadorismo britânico.

Da mesma forma, a italiana Giorgia Meloni moderou seu discurso contra a União Europeia e os ataques aos imigrantes, o que afastou de seu governo os membros mais extremistas.

Na própria Holanda, o vencedor terá que baixar o tom da cruzada antirreligiosa e dificilmente conseguirá tirar o país do bloco europeu. As negociações para costurar alianças são notoriamente difíceis lá. Da última vez, as tratativas para a formação de um governo levaram 271 dias, um recorde. E o Partido pela Liberdade, de Geert Wilders, conquistou 37 assentos no Parlamento — são necessários 76 para a maioria.

Javier Milei atacou “castas políticas”: eleito, moderou o discurso e acenou para Lula (Crédito:Emiliano Lasalvia / AFP)

Isso não quer dizer que instituições democráticas não sofram riscos. Um segundo mandato de Trump seria mais nocivo, já que sua agenda para minar a Justiça e o processo eleitoral teria prioridade e seria mais organizado. Seus aliados aprenderam com a dificuldade em reverter o resultado das urnas em 2020.

Sua delicada situação legal não parece ter afetado sua pré-candidatura. Ele enfrenta 91 acusações de diferentes crimes em quatro indiciamentos. Mas os processos parecem fortalecê-lo, ao invés de enfraquecê-lo.

Seus rivais no Partido Republicano não conseguem ameaçá-lo, por isso ele nem se dá ao trabalho de comparecer aos debates de pré-campanha da legenda. É praticamente certo que ele triunfará nas primárias que se iniciam em 15 de janeiro.

Enquanto a reeleição do presidente Joe Biden é cada vez mais questionada pela sua impopularidade e idade avançada, Trump atrai mais os jovens, latinos e negros, ganhando espaço no eleitorado tradicional dos democratas.

Giorgia Meloni levou um partido de origem neofascista ao poder em outubro de 2023 (Crédito:Pier Marco Tacca)

Todos os populistas se espelham em Trump. Por isso as eleições americanas do próximo ano são tão importantes. Um novo mandato para ele deve significar o aumento do protecionismo comercial, o acirramento da nova guerra fria com a China, o enfraquecimento de órgãos multilaterais como a ONU.

Em resumo, uma nova ordem internacional em que as ditaduras estão seguras e são dominantes e em que as democracias têm menos influência. Nesse cenário, países mais poderosos voltam a se sentir à vontade para expandir sua área de influência à força, como Vladimir Putin tenta fazer na Europa e o Irã, no Oriente Médio.

Um segundo governo Trump dará novo impulso ao isolacionismo e vai reforçar em política externa as posições que unem os radicais de direita na Europa:
contra o apoio militar à Ucrânia,
e incondicionalmente a favor da intervenção de Israel em Gaza, à revelia de uma posição negociada com os palestinos.

Protestos de grupos extremistas contra imigrantes em Colônia (Crédito:Sascha Schuermann)

Essa nova hegemonia também é fundada nas pautas de costumes. Uma poderosa sinalização nesse sentido foi dada nos EUA com a reversão do direito ao aborto na Suprema Corte, decisão histórica que estava em vigor há 50 anos.

Essa decisão reverbera em países como a Espanha, onde o Vox tenta revogar a legislação sobre violência de gênero e procura reverter direitos das mulheres, e na Hungria, onde Orbán ataca abertamente o “lobby LGBTQ”.

Não é apenas a luta pelos direitos das mulheres e pela diversidade que é ameaçada. A religião também virou arena de disputas. Na Holanda, a plataforma vencedora vai contra a liberdade de culto: é anti-islâmica, deseja o banimento do Alcorão e o fechamento das mesquitas.

E a xenofobia cresce de forma generalizada, num momento em que a crise com imigrantes na Europa é a maior desde 2016.

O domínio da extrema-direita também ameaça o consenso sobre o perigo climático e pode prolongar a emissão de gases de efeito-estufa, particularmente grave num momento em que os fenômenos extremos, como calor, incêndios e inundações, multiplicam-se em todo o planeta. Na Holanda, o partido vencedor prega mesmo o aumento da exploração de petróleo e gás, com o abandono dos acordos climáticos internacionais.

Viktor Orbán ganhou um quarto mandatoem 2023: controle das instituições (Crédito:Anna Szilagyi)

Esse predomínio conservador não surgiu do nada. Foi alimentado nas últimas décadas. Desde a crise financeira de 2008, que gerou enorme desconfiança contra as elites econômicas, até a pandemia de 2020, que obrigou o mundo inteiro a adotar medidas restritivas, gerando rejeição à ciência e à autoridade governamental.

Isso abriu espaço para teorias conspiratórias e a busca de bodes expiatórios, um terreno fértil para oportunistas. O nacionalismo virou uma bandeira poderosa para o ressentimento de segmentos da população que se sentiram relegados economicamente pela globalização e pela revolução tecnológica das bigtechs.

A popularização das redes sociais enfraqueceu a imprensa independente e deu combustível para o radicalismo.

Nos EUA, o bilionário Elon Musk virou o símbolo de como elas permanecem de portas abertas para o extremismo, após adquirir o Twitter (rebatizado de X), afrouxar a moderação e reabrir as portas para Trump.

“Onde há crise econômica, a juventude é muito prejudicada e não vê futuro. Daí a força da extrema-direita, disseminada pelas redes sociais, se explica ainda mais. As mensagens têm características de grupos sociais, e não de movimentos políticos.”
Emerson Cervi, cientista político da UFPR.

Armadilha identitária

Outro fator para a ascensão extremista, dizem especialistas, é o predomínio das pautas identitárias de esquerda. Como argumenta o cientista político americano Yascha Mounk no recém-lançado The Identity Trap (A Armadilha Identitária), as políticas progressistas da esquerda que visam corrigir raça, gênero e orientação sexual impulsionam populistas como Trump.

Segundo ele, essas pautas e o populismo de extrema-direita são opostos ideológicos, mas em termos práticos e políticos reforçam a posição um do outro. É uma tese semelhante à que o historiador Mark Lilla já defendia após Trump chegar ao poder: o identitarismo está minando a busca de consensos e fortalecendo os discursos populistas, como havia alertado.

Autor de um best-seller sobre a polarização nos EUA, The Soul of America (A Alma da América), o jornalista e escritor Jon Meacham tem uma visão mais otimista sobre a crise americana, matizada pela perspectiva histórica.

Ele argumenta que a democracia amadureceu em meio aos conflitos no país, e que o atual cenário não é inédito. A própria Guerra Civil, a luta das sufragistas, o macartismo, a Depressão e os conflitos isolacionistas pré-Segunda Guerra colocam em perspectiva as ameaças representadas por Trump.

Atualmente, há supremacistas brancos abraçando de forma estridente a campanha do ex-presidente. Mas Meacham lembra que os democratas só conseguiram há pouco mais de 50 anos garantir o direito ao voto aos negros, enquanto há menos de cem anos, em 1928, 30 mil membros da Ku Klux Kan desfilavam em frente à Casa Branca.

António Costa Pinto, cientista político do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, argumenta que a extrema-direita se estabeleceu na Europa:
com a crise de representatividade dos partidos democráticos tradicionais,
pelos desafios como globalização e imigração,
e como reação à corrupção.

Esses fatores explicam a revolta eleitoral, afirma. Ele diz que o apelo é o mesmo nos EUA. “É aquele discurso populista, anti-imigrantes, protecionista, de povo contra as elites, o aborto e a identidade de gênero. O que existe em comum são os valores conservadores. Hoje são eles a ameaça à democracia liberal, e não a esquerda radical”, defende. “Passou da hora de se começar a tratar a direita extremista como um fenômeno que veio para ficar. O movimento já estava aí e não vai recuar, ainda que alguns líderes possam sofrer derrotas. A extrema-direita não depende de lideranças”, ressalta Cervi, da UFPR.

Democracias ameaçadas
Ataque às instituições mostra o perigo real da normalização do discurso extremista

Entre 2015 e 2020, triplicou o número de ataques da extrema-direita pelo mundo, segundo a ONU.

Os ataques ao Capitólio dos EUA (2021) e à sede dos Três Poderes em Brasília (este ano) são a materialização da investida contra as democracias, ainda que tenham fracassado em seu objetivo final.

Mas as ameaças são permanentes.

Na Polônia, a legenda da extrema-direita nacionalista Lei e Justiça (PiS), do presidente Andrzej Duda, pretendia avançar em temas como a restrição à Justiça até ser barrado – por pouco – nas eleições de outubro.
Viktor Orbán, que venceu na Hungria pela quarta vez em 2022, ganhou apoio para restringir mais a liberdade de imprensa, perseguir críticos e interferir na Justiça. O Partido pela Liberdade, vencedor da eleição na Holanda no dia 23, critica o Parlamento e o Judiciário do país.

A chegada ao poder dos radicais de direita serve de alerta, já que as democracias modernas não sucumbem mais com golpes militares, como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem, de 2018.

Para eles, são os próprios políticos que minam as instituições ao chegar ao poder. Tyranny of the Minority (Tirania da Minoria), recém-lançado pela dupla, se volta para o perigo das distorções de representação do sistema político americano. O sinal de alerta ficou ainda mais forte com a possibilidade de Trump voltar à Casa Branca.

(Omer Messinger)

Três ataques aos Parlamentos pela extrema-direita: em Washington (2021), Berlim (2020) e Brasília (2023) (Crédito:Gabriela Biló )

Colaborou Denise Mirás