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Congresso x STF: entenda o que está por trás do argumento “equilíbrio de poderes”

PEC aprovada no Senado coloca em xeque o equilíbrio entre os Poderes e irrita ministros do Supremo. Ao tentar impor limites à Corte, o Congresso mira o Executivo com chantagem visando evitar que decisões judiciais impeçam o controle sobre emendas

Crédito:  Pedro Ladeira/

O presidente do Senado, Rodrigo Pachedo, negou qualquer retaliação, mas não convenceu os ministro do STF (Crédito: Pedro Ladeira/)

Por Vasconcelo Quadros

O Congresso atira no que vê para acertar no que não vê. A aprovação da PEC que limita a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos demais tribunais superiores, impedindo que leis aprovadas no Legislativo com repercussão geral sejam suspensas por decisões monocráticas, voltou a tensionar a relação entres os Três Poderes. Mas a medida tem como endereço o governo e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), prerrogativa do Executivo cujo controle é vital para garantir as emendas parlamentares, que no ano que vem chegam a R$ 37,6 bilhões.

Resolvida no Senado com 52 votos a favor e 18 contra em dois turnos, a PEC segue para a Câmara dos Deputados, onde também precisa de votação em dois turnos para passar. Embora neguem, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e da Câmara, Arthur Lira (PP), atuam em linha e querem dar uma demonstração de força, avisando que as duas Casas têm votos suficientes para qualquer decisão legislativa sobre os demais Poderes. No fundo, miram seus interesses políticos e as emendas parlamentares.

Além de invadir o Regimento Interno do STF, obrigando decisão do plenário por maioria de seis votos, a PEC é também redundante e desnecessária: no início do ano, por decisão da ex-presidente da Corte Rosa Weber, o STF aprovou mudança no regimento, determinando o envio imediato para o plenário de decisões individuais sobre o mesmo tema e prazo máximo de 90 dias para respostas a pedidos de vista.

Em tramitação desde 2021, a discussão ganhou corpo com a escalada do confronto aberto pelo Senado com o STF. Essa disputa aumentou com decisões estranhas de Pacheco, que depois de ver seu nome preterido para o STF começou a pautar matérias que se chocam com decisões da Corte.

Deputados e senadores usam como pretexto o argumento segundo o qual nos últimos anos o STF vem imprimindo um ativismo judicial que interfere na pauta legislativa, aceitando a judicialização de matérias. O argumento é frágil, já que o STF é um Poder que não toma esse tipo de iniciativa e só reage quando provocado.

Ministros do STF se irritaram com o líder do governo, Jacques Wagner (centro), que votou a favor da PEC (Crédito:Jefferson Rudy)

Em agosto, uma outra PEC polêmica, a do marco temporal, foi aprovada a toque de caixa por pressão da bancada ruralista no mesmo período em que o STF definia a tese como inconstitucional. Ainda assim, a matéria foi aprovada e, mesmo tendo sido vetada pelo presidente Lula, está novamente na pauta das duas Casas.

É provável que antes do recesso parlamentar o Congresso derrube o veto, agravando a crise e obrigando o STF a declarar a inconstitucionalidade da PEC.

Outras duas PECs em tramitação devem gerar mais tensão. Uma delas propõe mandato de oito anos para ministro do STF e a outra limita pedidos de vista. O presidente da Corte, Luiz Roberto Barroso, já declarou que não é contra a atuação do Legislativo e que, embora discorde, compreende o papel do Parlamento, mas não vê nada errado no comportamento do STF.

Depois da aprovação, subiu o tom: “Não cabe sacrificar as instituições no altar das conveniências políticas”.

Gilmar Mendes foi ainda mais incisivo: “Esta Casa não é composta por covardes. Cumpre dizê-lo com serenidade, mas com firmeza e com o desassombro que esse tipo de investida exige de todos nós. Este Supremo não admite intimidações”.

Luís Roberto Barroso, presidente do STF (Crédito:Mateus Bonomi)

“Não cabe sacrificar instituições no altar das conveniências políticas.”
Luís Roberto Barroso, presidente do STF

A PEC aprovada no Senado coloca em xeque o equilíbrio entre os Poderes. Ela sinaliza claramente que, ao tentar impor uma espécie de cabresto no STF, o Congresso mira o Executivo com chantagem que, no final das contas, tem a finalidade de evitar que decisões judiciais impeçam o controle sobre liberação de recursos públicos para as emendas.

No Orçamento do ano que vem, os parlamentares e as bancadas devem adequar as emendas ao que exige o plano plurianual 2024/2027. A liberação de dinheiro pelo Tesouro obriga que a indicação e execução das emendas sejam melhor justificadas, colocando ordem no que até aqui vinha funcionando de acordo com a conveniência dos presidentes e líderes, que no governo Bolsonaro, em completa abdicação das prerrogativas do Executivo, dominaram o Orçamento como se o País tivesse mudado para um regime semiparlamentarista. Lira, Pacheco e os relatores decidiam valores e destino das emendas através do chamado orçamento secreto.

Na votação dessa quarta-feira, houve uma traição na seara do PT. O senador Jacques Wagner (BA), líder do governo, pouco antes da sessão anunciou que votaria favorável à proposta, o que decepcionou o núcleo político do Planalto e ministros do STF, que nem mesmo no auge das provocações e ofensas de Bolsonaro enfrentaram um clima tão hostil no Senado, justamente a Casa que deveria atuar em harmonia com o Judiciário.

A decisão contrariou a vontade da bancada petista que, com exceção de Wagner, votou contra a PEC. O senador Humberto Costa (PE) disse que a matéria era totalmente inoportuna e sua aprovação, no atual contexto de conflito, deve agravar a crise. “Essa é uma maneira de manter vivo um tensionamento entre os Poderes, que já nos trouxe enormes prejuízos políticos e institucional e insuflou até mesmo os que viram nessa seara uma oportunidade de fragilizar a democracia e derrubar o Estado de Direito”.

Ele se refere, é claro, à tentativa de golpe em 8 de janeiro e à reorganização da bancada bolsonarista que, aliada a evangélicos, armamentistas e ruralistas, atua para demonstrar apoio a Bolsonaro, que a qualquer momento pode ter seu destino selado pelo Judiciário.

Nos bastidores, ministros do STF têm dito que se trata de um revide às posições da Corte contra as ameaças de Bolsonaro e também pela votação de temas que confrontam a pauta de costumes do bolsonarismo, como a descriminalização do aborto e da maconha.

A anuência de Jacques Wagner causou especial irritação, o que pode azedar a relação da Corte com o governo Lula. Ministros esperam até que Wagner seja destituído da liderança do governo na Casa para mostrar que o Planalto não endossou a medida.

Pacheco sustenta, no entanto, que não colocou a matéria em votação movido por retaliação ao STF. “Não é resposta, não é retaliação, não é nenhum tipo de revanchismo. É a busca de um equilíbrio entre os Poderes.”

O presidente do Senado criticou as decisões monocráticas afirmando que se matérias aprovadas pelo Legislativo caírem no STF, que seja então pela votação dos 11 integrantes da Corte.

Pacheco faz o jogo político de olho na disputa pelo governo de Minas Gerais, em 2026, e numa eventual eleição de seu aliado, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil), que deseja voltar à presidência do Congresso no ano que vem.

O líder do PT, Fabiano Contarato (ES), afirmou que caso a matéria não seja derrubada ou declarada inconstitucional, numa eventual pandemia o STF não pode mais tomar decisões imediatas que contrariem um governo negacionista. “Com essa PEC não é mais possível um ministro decidir e determinar que aquele ato do presidente da República, para preservar o principal bem jurídico, que é a vida, é inconstitucional.”

Quem mais gostou da decisão foi autor da PEC, Oriovisto Guimarães (Podemos), que apresentou a proposta em 2019 e já não alimentava esperanças de vê-la votada. “Espero que a Câmara não pare. O Brasil precisa ser modificado, e hoje nós fizemos isso.”

A PEC que segue para a Câmara foi aprovada com outras mudanças. Em ação encaminhada durante o recesso do Judiciário que implique na suspensão da eficácia de lei, será permitido conceder decisão monocrática em caso de grave urgência ou risco de dano irreparável, mas com decisão de mérito em até 30 dias após o retorno aos trabalhos.

A mesma regra vale para decisões que possam afetar políticas públicas ou criar despesas; no caso de decisões cautelares, a inconstitucionalidade deve ser julgada em até seis meses, prazo em que a matéria passa a ter prioridade na pauta.

Para ser aprovada ainda este ano, como quer a oposição, a PEC deve ser votada em dois turnos por dois terços dos 513 deputados, sem que o texto seja alterado na Câmara. Se mexer, a matéria volta para o Senado.

Arthur Lira reagiu de forma dúbia sobre a possibilidade de uma votação que confirme a decisão do Senado. “Não controlo o voto dos deputados.” Deu de ombros e sinalizou que, se depender dele, a matéria terá o mesmo rito célere do Senado, o que pode significar uma breve decisão.