O apagão

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Mentor Neto: "Porque só ele sabia como tinha sido heroico garantir a sobrevivência do casamento durante a pandemia" (Crédito: Divulgação)

Por Mentor Neto

Cícero ama Gumercinda. Mas não é coisa fácil.

Foi só a luz apagar para a esposa gritar lá da cozinha:

— Cícero! Caiu a porcaria da chave de novo!

Cícero, que sempre foi muito jeitoso com essas coisas manuais, sabia que não tinha sido a chave. Primeiro porque estava chovendo e sempre que chove acaba a luz. Segundo porque olhando pela janela do apartamento, pôde notar que toda a vizinhança estava sem luz, menos a padaria, que tem gerador. E, finalmente, porque ele mesmo havia trocado o disjuntor que, no passado, estava subdimensionado. Coisa de economia porca da construtora.

— Não é aqui, meu bem. É no bairro.

— Aí meu deus…justo hoje que eu tenho mais de 200 coxinhas para entregar?

— Calma, amor, já já volta. – Cícero ama Gumercinda, então sempre tenta manter a mulher tranquila.

Mas a luz não voltou.

Passada uma hora no escuro, Gumercinda andava para lá e para cá com uma vela colada com cera num pires, fantasmagórica.
— Não pode ser, Cícero. Já faz umas três horas que essa luz acabou. Tem certeza que não é aqui?

— Amor, não faz nem uma hora ainda. Calma!

— Calma?! Como é que eu vou ter calma, Cícero? Eu prometi essas coxinhas para amanhã na primeira hora! É para o casamento da prima da Celene, aquela que tem mais de 3 mil no Insta.

— A que posta foto de lingerie? – Cícero deixou escapar.

— Ué, como que você sabe? Cícero, Cícero…

Para evitar confusão, Cícero inventou de “dar uma olhada na caixa de entrada”, como se fosse capaz de fazer a luz voltar no bairro.

A luz que ilumina o amor

Ao invés disso, foi à padaria, levando seu celular e o carregador.

Não foi o único. A padaria parecia uma lan house. Todas as tomadas ocupadas, com o bairro inteiro carregando seus celulares.

Cícero sentou no balcão e, como freguês frequente, estendeu o celular para que o Maradona, chapeiro, desse um jeito.

—Pão batido e chocolate na chapa? – Maradona era dado a essas gracinhas de tiozão.

Cícero fez ok com o polegar e se pôs a pensar quanto tempo o bairro ficaria sem luz.

Sabe-se lá o porquê, sentado no balcão da padaria, aguardando seu pão na chapa, Cícero teve uma premonição.

“E se ficarmos, sei lá, dez, vinte, trinta horas sem luz?”, pensou.

Quando falta luz a gente sempre pensa essas coisas.

No mesmo momento sentiu um calafrio correr por sua espinha.

Pensou em Walking Dead, que tinha assistido a todas as temporadas.

Mas sua preocupação maior não era a comida apodrecendo na geladeira, ou a impossibilidade de usar eletrodomésticos.

Sua preocupação era a Gumercinda.

Porque só ele sabia como tinha sido heroico garantir a sobrevivência do casamento durante a pandemia.

Impossível sobreviver a blackout de algumas dezenas de horas.

Quando o pão na chapa chegou, encontrou Cícero desesperado por dentro.

Sabia que a luz não voltaria tão cedo.

Olhou para Maradona e, do nada, disse:

— Sabe de quem é a culpa desse apagão?

— Que apagão? – com a padaria lotada, Maradona não teve nem tempo de perceber que faltava luz no bairro.

— A culpa é da Prefeitura que não corta as árvores! Isso sim.

Maradona não entendeu nada e voltou para a chapa, deixando Cícero matutando.

— Eu amo a Gumercinda, porém mais duas horas de falta de luz e eu peço o divórcio, que é melhor para nós dois – pensou em voz alta.

Nesse momento, um grito abafado, desses de multidão em estádio, correu pelo bairro.

A luz tinha voltado. Cícero conferiu o relógio. O casamento tinha sobrevivido.

Voltou para casa e, quando entrou, Gumercinda estava eufórica na cozinha.

— Amor! Voltou, voltou!

— Eu sei, meu bem. Eu dei um jeito lá na caixa de luz.

— Ai, Cícero, você é demais…

E hoje, se você passar pelo bairro e encontrar um sujeito cortando galhos de árvore, pode ter certeza: é o Cícero.