Como entender a letalidade bélica dos nossos jovens?
Estudante de 17 anos é assassinada por colega em escola de São Paulo. É mais um caso a demonstrar a escalada nacional desse tipo de crime e a cobrar providências imediatas do Poder público, embora existam governadores que continuem sucateando a Educação com cortes de verbas, psicólogos e educadores
Por Antonio Carlos Prado e Elba Kriss
Enquanto tentava se fixar no Rio de Janeiro, o escritor austríaco Stefan Zweig escreveu na década de 1940 que o “Brasil é o país do futuro” — e camuflou, assim, o ufanismo e os interesses patrimonialistas do estamento político da época. Vivíamos aqui a era getulista; no mundo, a Segunda Guerra. O tal do futuro que Zweig prenunciava maravilhoso nunca deu as caras, mas engendrou outra propalada máxima: “Os adolescentes e a juventude de hoje são o Brasil de amanhã”. Que lindo! Digno de um poema parnasiano! Mas nesse momento em que se assiste à escalada de ataques a escolas em todo o País, cometidos por alunos ou ex-alunos que ferem e matam colegas e professores, é natural então que perguntemos como será concretamente esse “amanhã”.
Resposta simples: nota zero mais nota zero é igual a zero. Não há esse “amanhã” que seria raiado pela juventude, e isso porque, como demonstram pesquisas e explicam especialistas educacionais, “em sua maioria os jovens brasileiros estão desorientados e sem perspectiva”.
Na semana passada, o Brasil passou pelo trigésimo sexto ataque a um colégio público, a contar de 2001. Ocorreu na Escola Estadual de Sapopemba (sim, autoridades, há um bairro periférico paulistano com o nome tupi de Sapopemba).
Um aluno de 16 anos, atirando a esmo, matou uma colega a tiro e ainda feriu outras três pessoas tão novas quanto ele, que está agora sob custódia da Justiça.
Os números falam por si: a cada dez escolas estaduais, seis sofreram ataques entre 2022 e o início de 2023. Mais: 58% deles, em duas décadas, se deram nesse período. Agora, para fechar e passar a régua sob estatísticas: em 22 anos o Brasil assistiu estarrecido a 36 ataques, 60% após a pandemia de Covid-19.
É normal que haja repetições ou incongruências entre um balanço e outro, faz parte de qualquer contagem, sobretudo quando envolve fúnebres dados. Mas a gravidade da situação ficou explanada.
“Estamos no caminho dos EUA”, afirma com extrema lucidez Cleo Garcia, advogada, mestranda da Faculdade de Educação da Unicamp e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral. Ela acrescenta: “Faz falta sistema de apoio à saúde mental que poderia atender jovens e adolescentes antes de eles chegarem a atos de violência”. E finaliza: “Como querer que esses alunos sejam civilizados se eles vivem em uma sociedade caótica e violenta?”.
Para o educador Anderson Cruz, dono de sofisticado raciocínio e integrante da Comissão Estadual do Meio Ambiente da OAB paulista, “um dos problemas é a falta de inteligência emocional de alguns professores, porque também a formação do corpo docente é deficitária”.
Ouçamos, em linha paralela, o filósofo, professor e escritor Maria Sergio Cortella. Disse ele em Educar para Transformar: “A escola não cria violência sozinha, apenas reproduz a violência dentro dela. Mas a escola pode ser também um meio de diminuí-la se atuar com conteúdo que ofereça sentido para a vida dos alunos”.
Há algo, agora, a nos fazer pensar. “Sentido para a vida”? Ele disse “sentido para a vida”? Pois bem, isso nos remete ao começo desse texto, quando se afirmou que boa parcela da juventude está desalentada — e traz um nó na garganta que a psiquiatria e a psicologia sabem ser indicador de ansiedade e depressão exacerbadas que obnubilam o raciocínio e podem levar, a depender do temperamento de cada indivíduo, a atitudes extremas.
Nada vem do nada, tudo advém de causas concretas. O Brasil foi impregnado durante quatro anos pelo discurso de ódio de Jair Bolsonaro. É óbvio que ele não mandou ninguém atacar escolas, é claro que ele não pode ser diretamente responsabilizado por tais insanidades.
Mas vivemos nos moderninhos e supérfluos tempos das moderninhas e supérfluas redes sociais que se espalham pelo tecido social — nelas, o jovem de Sapopemba, que a escola já sabia que andava brigando, aprendeu a usar a arma que pegou do pai às escondidas.
Pois bem, nessas tais redes Bolsonaro instaurou e propagou o ódio. Para adolescentes e jovens, imaturos nas vicissitudes da vida, isso não é bom. Deu ruim.
Deu muito ruim, também, o derrame de armas na praça que a gestão Bolsonaro promoveu e deixou de herança. Armas, armas, armas à mão cheia.
E, já que utilizamos essa antiquíssima expressão (mão cheia), vale lembrar uma voz que soou forte e vitoriosa na nossa querida Bahia do século XIX, a voz do poeta Castro Alves. Vale como aula para muitos governadores atuais, incluído o de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e seu secretário da Educação, Renato Feder.
Improvisou o poeta em Praça Pública: “Bendito aquele que semeia/ livros, livros à mão cheia/ e manda o povo pensar/ o livro caindo n’alma/ é germe que faz a palma/ é gota que faz o mar”. Jovem vaidoso e cheio de si (que costumava dizer “pais guardem suas filhas, Castro Alves vai às ruas”), ele conclamou os baianos a lutarem por cultura — e o fez com a idade que hoje muitos rapazolas matam e morrem em instituições de ensino.
Se um autocrata armou os jovens e a pandemia deu-lhes a solidão do quarto e dos videogames, a solidão amorosa e a solidão dos amigos, embutindo neles a “raiva da vida” que no universo psíquico é muitas vezes sinônimo de medo da morte, nada disso lhes alterou uma das características humanas: quem vai matar ou suicidar-se dá sinais, minimalistas sinais.
A prática de bullying, pessoal ou pelas redes sociais, surge sempre como uma das principais e primeiras tentativas do agressor de justificar seu ato criminoso.
A psiquiatria e a psicologia explicam que o bullying é tanto pior na fase da vida em que o indivíduo está formando sua estrutura emocional, organizando idéias e sentimentos que mantêm atuantes a rede neuronal e a formação do sistema nervoso central.
As primeiras palavras à polícia, pronunciadas pelo moço que assassinou a colega Giovanna Bezerra da Silva, 17 anos, foram “bullying”, “vingança” e “vítima de homofobia”.
É possível argumentar que há gente, na mesma faixa etária, que teria o inteligente dom de rir de eventuais ofensas — e essa é também uma forma de “matar” preconceituosos idiotas que se julgam engraçadinhos. Mas rir é raro.
O bullying e o preconceito sequestram do jovem o vital sentimento de pertencimento, e sem grupo de apoio e de amigos ele monta o alto andaime da solidão que o faz entrevado em um mundo de ideias que giram em torno de si próprias, que se mostram intrusivas e destrutivas. Há, então, aqueles que transformam o andaime, antes simbólico, nas janelas abertas de seus quartos e delas se atiram ao asfalto — e ao nada. Há os que invadem escolas e matam colegas e professoras. Há quem mate e se suicide.
Seja qual for o caso, a pessoa sinaliza com alterações quase imperceptíveis em seu jeito de ser, mas somente olhos e ouvidos treinados conseguem observá-las. Fácil concluir, a partir desse ponto, a importância de psicólogos a acompanharem alunos nesses tempos pós-pandemia, nesses tempos de bullying, nesses tempos de pais armados a se gabarem do armamento que ostentam, nesses tempos de redes sociais submersas na clandestinidade (foi nelas, também, que o moço em tela aprendeu a procurar armas sob colchões na casa do pai).
Fácil concluir, também, quão árduo é o trabalho de psicólogos quando conta-se, como ocorre em São Paulo, com apenas quinhentos psicoterapeutas para aproximadamente cinco mil e duzentos alunos de escolas estaduais. É um absurdo total.
É uma política educacional criminosa por parte das autoridades. E se isso ocorre em São Paulo, mais uma vez, digamos, não é difícil imaginar como é no Brasil afora. Em alguns estados do Norte e Nordeste não há psicoterapeutas. Em determinados entes federativos existe um, e só um, para cerca de quatro mil alunos.
Verbas para contratação e aprimoramento de profissionais no campo da Educação ou destinadas à infraestrutura de colégios não rendem votos. Para dar dinheiro à área da Saúde, o governador de São Paulo ameaça tirar do setor da Educação. Dois setores estratégicos para a vida e a dignidade humanas.
Enquanto perdurou no Brasil a ditadura militar de cabeças nubladas sobre ombros estrelados, a perseguição ao antropólogo, etnólogo e escritor Darcy Ribeiro, já na década de 1970 reconhecido como um dos grandes intelectuais globais, fez-se emblemática da estultice de determinados governantes.
Darcy defendia um modelo educacional que ensinasse formalmente, mas também formasse a consciência da cidadania. Foi chamado pelos militares de “comunista” (Darcy Ribeiro comunista? Só rindo!) e acabou exilado.
Foi de sua lavra um ensinamento exemplar: “Se não investirmos já na construção de excelentes escolas, um dia faltará dinheiro para construirmos péssimas prisões”.
Darcy foi um dos fundadores da UnB em 1962. Para os jovens havia à época sentido de viver e de lutar por uma sociedade menos desigual — também a desigualdade entre pessoas deprime os moços e moças dos dias de hoje, apontam educadores. E as guerras deprimem e assaltam a racionalidade, assim como deprimiram e assaltaram a de Stefan Zweig. O inspirador de “o jovem de hoje é o Brasil de amanhã” suicidou-se.