Editorial

Polícia secreta bolsonarista

Crédito: Douglas Magno/AFP

Carlos José Marques: "Alta sofisticação e planejamento associados em prol do crime" (Crédito: Douglas Magno/AFP)

Por Carlos José Marques

Em todos os seus tentáculos criminosos, a falange do capitão Bolsonaro vem dando mostras diuturnamente de inequívocos pendores autoritários. Revelações surpreendentes, caudalosas, imorais (que a alguns até nem chocam mais, talvez por simpatia cega, quase viciante, ao alcunhado “mito”) chegam a apontar como esse ex-mandatário perseguiu, espionou, engendrou uma verdadeira máquina de policiamento secreto – tal qual a de uma Gestapo nazista dos novos tempos – para atender aos seus anseios de ditador bananeiro, meta não conquistada para a felicidade geral da Nação (ou ao menos para boa parte dela). Bolsonaro se esmerou nos ardis. As provas estão aí. Revelado agora que ele sequestrou a Abin, uma agência de inteligência civil que deveria prestar informações de caráter técnico ao Estado, e a usou em um serviço sujo de rastreamento (no todo ilegal, caracterizando invasão de privacidade não autorizada) de jornalistas, políticos adversários e advogados para contemplar planos de controle de tudo e de todos, numa arbitrariedade inominável. Bolsonaro tem, decerto, enorme fissura por manter a rédea sobre os outros. Adorava bisbilhotar, maquinar vinganças e gerar massa crítica de combustível às suas fake news que disparava de um gabinete do ódio montado em pleno Palácio do Planalto. Manifestou isso em diversas ocasiões, inclusive em reuniões oficiais com ministros. A Abin, constituída por 42 órgãos, entre eles a Polícia Federal e as Forças Armadas, era um prato cheio a saciar tais desejos. A Polícia Federal, nas investigações recentes que realizou, conseguiu rastrear mais de 30 mil usos ilegais de sistema feitos pela Abin no período Bolsonaro. É um desassombro sem tamanho. Há seis meses, a agência, sob nova direção nos acordes do governo Lula, vinha municiando o ministro Alexandre de Moraes e o STF com informações importantes e documentos que traçam o modus operandi da quadrilha de encomendas irregulares que foi montada ali a mando do ex-presidente. Havia um software espião com rotineiros relatórios a localizar e monitorar pessoas escolhidas a dedo, alvos do interesse do capitão. Na paranoia autoritária que acalentava, planos golpistas projetavam-se como o maior objetivo. O acesso a metadados possibilitava precisamente, de forma indevida (é sempre bom pontuar), o paradeiro até mesmo de deliberações reservadas da mais alta Corte. Quebraram o sigilo telefônico do ministro Moraes em pessoa, das figuras que criticavam ou atrapalhavam as arteirices do então titular do poder e criaram um roteiro de ações que levaram a eventos como o bloqueio de rodovias, acampamentos nos quartéis, financiamentos eleitorais e até ao episódio terrorista da bomba no aeroporto, culminando depois com o fatídico 8 de Janeiro. A pretensa “polícia secreta” do capitão fez um estrago cuja exata dimensão ainda não foi completamente desenhada. O entendimento entre investigadores é que a atuação de Bolsonaro nesse sentido, e do elenco de malfeitores que lhe deram guarida na operação, “ultrapassou a mera cogitação e atos preparatórios” para o que depois veio a ser o malfadado golpe. Tudo está interligado na tentativa de uma ruptura democrática que, por pouco, não se concretizou. Os mentores, no momento alvo de batidas policiais, serão ouvidos em processos e nas convocações paralelas do Congresso. O estrago já está tipificado. Para tentar driblar o inevitável e jogar para baixo do tapete os desvios de finalidade da era Bolsonaro que maculam a reputação da agência, a própria Abin, até recentemente, como reiterou em agosto passado, procurou alegar que o controle externo de suas atividades cabia à comissão de inteligência do Congresso. Até aqui, dois servidores já foram presos, cerca de US$ 170 mil apreendidos na casa de um diretor e cinco membros do alto escalão afastados pelo uso indevido do sistema de geolocalização “First Mile”, comprado por alguns milhões de reais, capaz de acompanhar e reter informações de mais de dez mil celulares simultaneamente. Alta sofisticação e planejamento associados em prol do crime. E o que é mais grave: sob a batuta direta de um presidente da República. Poucas vezes na história nacional algo parecido ocorreu. Em tempos de liberdade democrática, jamais. Jair Messias Bolsonaro inaugurou uma era sombria cujo desenlace poderia de fato ter levado o País a um novo e imprevisível período de chumbo. Que ninguém jamais se esqueça disso e que as punições pela afronta sejam efetivas.