Política

“Devemos repudiar o terrorismo e abrir as portas aos refugiados”, diz senadora Mara Gabrilli

Crédito: Zé Carlos Barretta

Mara Gabrilli: “A guerra entre os Poderes está indo longe demais e isso faz mal para a democracia” (Crédito: Zé Carlos Barretta)

Por Gabriela Rölke

Senadora eleita por São Paulo em 2018, Mara Gabrilli (PSD) ficou conhecida nacionalmente nas eleições do ano passado, quando foi vice na chapa de Simone Tebet (MDB) para a Presidência da República, em uma audaciosa tentativa de construir uma terceira via como alternativa à polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que acabou eleito, e Jair Bolsonaro (PL). Tetraplégica desde que sofreu um acidente de carro em 1994, sempre pautou sua trajetória política pela defesa dos direitos das pessoas com deficiência. Atualmente, preside a Subcomissão de Doenças Raras do Senado e a Comissão Mista sobre Migrações e Refugiados do Congresso, por meio da qual defende que o País abra as portas para os refugiados do conflito no Oriente Médio. “O Brasil deve adotar, em relação aos palestinos, a mesma acolhida humanitária que já ofereceu aos ucranianos, sírios e afegãoso.” À ISTOÉ, ela criticou a queda de braço entre Poderes e não fugiu de temas sensíveis como aborto, cannabis medicinal e casamento homoafetivo. Para ela, se a união de pessoas do mesmo sexo for proibida “seria um retrocesso imensurável”.

Como a sra. vê os esforços de Lula pela paz no Oriente Médio?
Estou bem impressionada com os esforços do Itamaraty. Na Comissão de Relações Exteriores, ouvimos o chanceler Mauro Vieira sobre o posicionamento do Brasil com relação ao conflito entre Israel e Palestina. Também acompanhei com emoção a chegada de brasileiros que estavam em Israel.

Como presidente da Comissão Mista sobre Migrações e Refugiados, a sra. propôs ao Ministério da Justiça a criação de visto humanitário para palestinos e armênios. O Brasil poderá ser um dos países a receber refugiados palestinos na guerra do Oriente Médio?
Devemos repudiar o terrorismo e abrir as portas aos refugiados. Seria fundamental uma medida similar às portarias do Itamaraty e do Ministério da Justiça feitas aos ucranianos, sírios e afegãos para fins de acolhida humanitária também aos palestinos, armênios e às populações que buscam refúgio, de forma solidária e sem seletividade.

Como a sra. avalia o governo do presidente Lula?
A gente tem legislações importantes que ainda não são cumpridas ou regulamentadas. Há muita diferença de gênero dentro do governo, sendo que foi dito que haveria um equilíbrio entre homens e mulheres no Executivo. Agora estamos lutando para que o presidente escolha uma mulher para a vaga de Rosa Weber no STF, mas não é o que a gente está assistindo. São vários os temas que têm sido muito pouco aprofundados. Lula é visto como alguém preocupado com a pobreza, mas muitos daqueles que são mais vulneráveis continuam desassistidos. Por enquanto, eu posso dizer que os avanços para esse público foram muito poucos, ou quase nada.

Como a sra. tem visto a queda e braço entre o Senado e o STF? É uma reação do Legislativo?
Ouço muitos senadores reclamando que o Supremo está legislando e que não deveria fazer isso. Mas a gente sabe que a Corte faz isso quando é provocada, e muitas vezes porque o Legislativo deixou de fazer. Hoje a gente tem vários temas em evidência, como a descriminalização do aborto, a descriminalização do porte de maconha e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Este último, aliás, é um tema que me deixa bastante revoltada, porque a gente já tinha uma decisão do Supremo sobre casamento homoafetivo, mas o Legislativo começou a desmantelar tudo. O casamento com pessoas do mesmo gênero é um fato: se as pessoas estão se relacionando e se amam, elas têm todo o direito de viver juntas, se casar e adotar crianças. Proibir seria um retrocesso imensurável.

“Lula disse que haveria um equilíbrio entre homens e mulheres no Executivo e até lutamos para que ele escolha uma mulher para o STF, mas não é o que a gente está assistindo” (Crédito: Evaristo Sa / AFP)

É preciso limitar a atuação dos ministros do Supremo?
Não acho que a gente deva limitar, acho que é preciso tentar trabalhar com harmonia, e isso não significa ausência de conflito. A divisão em Três Poderes é uma forma de regular, de garantir que essas instâncias não se sobreponham uma à outra. Talvez seja isso que esteja faltando no nosso País, o respeito às divergências para seja possível chegar a um consenso, em prol do Brasil, mas sem tirar o poder de ninguém.

Como a sra. vê a votação do STF para descriminalizar do porte de maconha?
Não deixa de ser um avanço, mas hoje a minha preocupação é com a cannabis medicinal. O uso recreativo da maconha não tem nada a ver com o uso da cannabis medicinal, e tenho muita preocupação com a confusão que isso possa trazer, que tire a atenção de algo importante, inclusive para o tratamento de doenças raras. São muitas as pessoas que precisam da cannabis. Não só por conta de convulsões, mas de depressão, de mau funcionamento do organismo. É importante também para pessoas com deficiência. Eu, por exemplo, tenho falta de movimento do pescoço para baixo, e, geralmente quem passa por uma paralisia assim, tem muitos espasmos, que são movimentos involuntários. Consigo controlar esses espasmos com exercícios e com cannabis medicinal.

Qual a sua opinião sobre o voto da ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto?
Acho que mulher nenhuma é a favor do aborto, ninguém quer passar por essa dor. Mas é uma questão de saúde pública. A gente está falando de um número elevado de curetagens por conta de aborto malsucedido feito clandestinamente. Estamos vivendo uma tragédia, e há muito tempo. Não dá para fechar o olho. Se a gente não legislar da forma correta, são as mulheres pobres que pagam por isso, morrem ou que ficam estéreis e doentes para o resto de suas vidas.

O Congresso se omitiu nas discussões sobre a maconha e o aborto?
Em relação à maconha, o Congresso demorou. Acho que o conservadorismo também é um impeditivo: essas visões mais conservadoras têm impedido a evolução da discussão, e discutir é muito importante. Quanto ao aborto, há uma falta de sinergia entre esse tema e a religião. Mas a gente precisa discutir, ouvir, falar, trazer dados reais, porque tem determinados dados que desmontam determinadas teses.

Sobre o marco temporal, a sra. está de acordo com a decisão do STF? Como vê a contraofensiva do Congresso?
Não sou contra a decisão do Supremo, e acho que para discutir a reversão desse posicionamento é preciso ouvir os mais atingidos. A gente tem que pisar no freio, não dá para fazer uma votação em segundos, estamos falando de algo que mexe com a vida de muitas pessoas.

Um dos principais atores do antagonismo entre o Congresso e o Supremo é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. A que a sra. atribui essa postura?
E eu acho que ele quer marcar posição. Talvez tenha interesses eleitorais também, faz parte do jogo. Eu gosto muito do trabalho dele. Atua com seriedade e demonstra muita sensibilidade em vários temas.

Essa guerra entre Poderes não está indo longe demais?
Sim, está indo longe demais, e isso faz mal para a democracia. É preciso respeitar as divergências e aprender a ponderar, para que seja possível chegar a um consenso em prol do Brasil. Sem isso, quem sai prejudicado é o povo brasileiro.

Por que os partidos de centro perderam o protagonismo?
Acho que o radicalismo vem contribuindo muito para isso. Durante a eleição, naquela polarização entre Lula e Bolsonaro, fui candidata a vice da Simone Tebet como uma via central, e apanhei por não ter tido o mesmo posicionamento dela, que, no segundo turno, declarou voto em Lula. Era uma exigência, uma pressão para que eu declarasse voto em um ou em outro, ignorando que existem outras coisas além dessa polarização do sim e do não.

Como vê a proposta do senador Hamilton Mourão para anistiar condenados do 8 de Janeiro pelos crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado de Direito?
Esse posicionamento me entristece. O relatório da CPMI do 8 de Janeiro sugeriu o indiciamento de pessoas ligadas aos atos antidemocráticos inclusive pela prática desses dois crimes. A relatora, senadora Eliziane Gama, está sofrendo privação da própria liberdade porque tem sofrido constantes ameaças à sua integridade física e passou a contar com escolta policial.

A sra. foi incisiva contra a possibilidade de comercialização, pela iniciativa privada, de plasma humano. A medida pode abrir precedentes perigosos?
Perigosíssimos.Pode abrir precedentes inclusive para a comercialização de órgãos e de sangue. Quando a gente fala de comercialização do plasma, refere-se à comercialização de sangue. E comercialização visa o lucro.

Quais são os principais desafios, no Brasil, para uma pessoa com deficiência?
Tudo começa pela saúde. Se a pessoa não tiver saúde, ela não vai ter disposição para abrir a porta de casa e encarar o segundo grande desafio, que são as calçadas. E aí vem o transporte, o trabalho, a educação. Estamos falando de uma política pública totalmente transversal, e eu gosto de frisar que ela começa com a saúde. Na verdade, começa até com habitação, porque para poder sair de casa, você tem que ter uma. A gente tem uma falta de acessibilidade que é sistêmica.

“Depois do relatório da CPMI de 8 de janeiro, Eliziane Gama está sofrendo privação da liberdade porque tem sofrido ameaças à sua integridade física e passou a contar com escolta policial” (Crédito: Gabriela Biló)

Antes da cirurgia no quadril, o presidente Lula disse que não se deixaria fotografar de andador ou de muleta. Como a senhora vê esse tipo de declaração?
Lula vem acumulando uma série de gafes desde a pré-campanha. A cerimônia de posse foi super bonita, marcada por representatividade, mas parece ter sido ideia de algum marqueteiro. Ele está alheio a temas relacionados à diversidade. Associa à feiura o uso de tecnologias que auxiliam pessoas com mobilidade reduzida. Houve outras falas preconceituosas, sobre escravidão, pessoas com transtornos mentais, pessoas obesas. É um desserviço, faz com que a população brasileira desaprenda.

Como presidente da Subcomissão de Doenças Raras do Senado, quais são suas prioridades?
O diagnóstico precoce, a ampliação da triagem neonatal através do teste do pezinho, da orelhinha, dos olhinhos e do coração, e uma política pública de genética humana no País. A disciplina, que ainda não é obrigatória nas faculdades de Medicina, poderia levar nossos médicos a diagnosticar uma doença rara com muito mais rapidez. A gente conseguiria evitar inúmeras comorbidades e doenças.