Brasil

Conheça os ‘kids pretos’, os agentes contra a democracia

Como militares especializados em operações especiais, que fazem parte da elite do Exército, foram arrastados pelo ex-presidente Bolsonaro para uma conspiração que objetivava dar um golpe de Estado

Crédito: Sergio Dutti

Soldados do 1º Batalhão de Forças Especiais fazem curso para operações letais do Exército em Goiânia (GO) (Crédito: Sergio Dutti)

Por Vasconcelo Quadros

A obsessão do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo golpe acabou arrastando para a cena política a mais preparada tropa de elite do País, o Batalhão de Forças Especiais do Exército, cuja atuação nas últimas seis décadas foi marcada por operações secretas e pela invisibilidade de seus integrantes. Agora se sabe que esses militares conhecidos como “kids pretos” ou “caveiras”, subordinados ao 1° Batalhão de Forças Especiais, sediado em Goiânia (GO), faziam parte da guarda pessoal de Bolsonaro desde o começo de seu governo, ocupavam cerca de 30 cargos de primeiro e segundo escalões e faziam parte do núcleo duro que planejou e executou, entre 30 de outubro de 2022 e 8 de janeiro deste ano, ações violentas em série com o objetivo de incendiar o País numa estratégia de guerra psicológica para gerar caos e atrair as Forças Armadas à aventura autoritária.

Investigações desenvolvidas pela Polícia Federal, e que foram reproduzidas no relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), aprovado na quarta-feira, 18, não deixam dúvidas de que Bolsonaro sempre esteve por trás dos atos antidemocráticos e tinha o apoio desse coeso grupo de agentes das forças especiais, com o qual pretendia atrair a adesão do grosso das tropas aos seus planos golpistas. Desde o início de seu governo, Bolsonaro usou os “kids pretos” para se blindar.

Mais de 400 militares especializados em todos os tipos de combate são treinados em batalhão que ocupa área de 3,4 Km2 em Goiânia (GO) (Crédito:Sergio Dutti)

Começou chamando o tenente-coronel Mauro Cid, que havia comandado as forças especiais, e assumiu o cargo de Ajudante de Ordens da Presidência.

No final, ele comandaria o Batalhão de Ação de Comando (BAC), que fica ao lado da unidade onde são treinados os “kids”, em Goiânia, mas sua nomeação acabou cancelada por decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois que a PF apurou o envolvimento de Cid nas falcatruas e ações contra a democracia arquitetadas pelo ex-capitão.

Quando ainda estava na cadeia por ter participado da fraude nos cartões de vacina da família Bolsonaro, ele fez acordo de delação e revelou episódios que colocam o ex-presidente como responsável pela tentativa de golpe.

O tenente-coronel Cid foi a ponte para sucessivas visitas do então presidente à base da corporação, que possui um contingente de 400 homens especializados em todos os tipos de combate, instalados num complexo militar de 3,4 quilômetros quadrados localizado no Jardim Guanabara, na região norte de Goiânia, visitado por ISTOÉ nesta semana.

Nos quatro anos em que governou, Bolsonaro foi presença constante no local, com pelo menos duas visitas por ano. “Bolsonaro não saía daqui”, contou um militar abordado pela reportagem no interior do complexo militar na quarta-feira, 18.

O comandante da unidade de forças especiais, coronel Martins Motta, recebeu os jornalistas de ISTOÉ, mas explicou que, por respeito à hierarquia, não poderia dar entrevista.

As acusações contra os “kids pretos” estão sendo tratadas pelo gabinete do comandante do Exército, Tomás Paiva. A menção aos nomes de integrantes da força que se envolveram nos atos antidemocráticos é uma mancha que o Exército deseja limpar, deixando que a Justiça aplique a lei para punir os militares que se envolveram nos ataques contra a democracia, individualizando as condutas. A ordem no comando é virar a página.

Os militares das forças especiais treinam paraquedismo, pontaria de tiro e operações na selva (Crédito:Sergio Dutti)

Ações no 8 de janeiro

As investigações apontam que os “kids” teriam:
 incitado o bloqueio dos caminhoneiros nas estradas,
organizado os acampamentos em frente aos quartéis,
e participado da tentativa de invasão à sede da Polícia Federal em Brasília no dia 12 de dezembro, que descambou para atos de vandalismo, com incêndios de ônibus, carros particulares e uma viatura do Corpo de Bombeiros, no momento em que Lula era diplomado no TSE.

Segundo as investigações, esses militares teriam estimulado ainda o frustrado atentado à bomba para explodir um caminhão-tanque cheio de combustíveis no Aeroporto Internacional de Brasília às vésperas do Natal e, no dia 8 de janeiro, teriam coordenado e incitado os manifestantes que atacaram as sedes do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso.

Teriam coordenado ainda o grupo que arrancou as grades de proteção usadas para destruir vidraças e escalar a cúpula do Congresso, além de terem encorajado os manifestantes a enfrentarem os poucos policiais militares que tentavam impedir a invasão jogando bombas de gás lacrimogêneo para conter os invasores radicalizados.

Chamou a atenção dos investigadores uma mensagem de áudio enviada por WhatsApp aos grupos de manifestantes pelo general Ridauto Lúcio Fernandes comemorando a invasão. Esse general, da reserva, é um dos “kids pretos” que comandou as forças especiais e no governo Bolsonaro foi responsável pelo setor de logística do então ministro da Saúde, general Eduardo Pauzello, outro militar oriundo do grupo das forças especiais.

“Quero dizer que tô arrepiado aqui. Pessoal acabou de travar a batalha do gás lacrimogêneo”, informou o general Ridauto ao interlocutor, sugerindo que integrantes do grupo, alguns deles de luvas e balaclava, usassem água para conter os efeitos do gás e também jogassem as bombas de volta contra os policiais que defendiam os prédios públicos.

No dia seguinte à destruição, foram encontrados nos corredores da Câmara e do Senado restos de granadas G 310, conhecidas como bailarinas, por ficarem saltitando e dificultando que sejam manipuladas até liberar todo o gás.

Esse tipo de granada não é usada pelas polícias legislativas, mas são comuns em treinamentos das forças especiais. Ridauto participa também do Instituto Sagres, entidade que representa a direita militar e elaborou um documento conhecido como Projeto Nação, que chegou a defender a permanência de Bolsonaro no poder até 2035.

Sonho nunca alcançado pelo capitão Jair Bolsonaro na carreira militar, a 1ª Brigada de Forças Especiais do Exército, unidade de pronto-emprego em combate, vinculada ao Comando de Operações Especiais (Copesp), marcou sua atuação pela discrição.

No final dos anos de 1980, quando ainda era capitão, Bolsonaro tentou por duas vezes ingressar na unidade, mas foi reprovado, o que só fez aumentar o fascínio pela tropa: os “kids pretos” se aproximaram tanto do bolsonarismo que deixaram suas digitais em ações deflagradas depois da eleição e que culminaram nos ataques de 8 de janeiro às sedes dos Três Poderes na fracassada tentativa de golpe.

Por conhecer bem as atividades das forças especiais, Bolsonaro cercou-se também de generais experientes que já haviam chefiado o Comando de Operações Especiais (Copesp), ao qual a tropa de elite é subordinada. Eram oito os “kids” que formavam o cinturão de proteção de generais palacianos:
• Augusto Heleno (GSI),
• Luiz Eduardo Ramos (Secretaria Geral Presidência),
• Walter Braga Netto (Casa Civil),
• Eduardo Pazuello (Saúde),
• Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Defesa),
• Júlio Cesar de Arruda (Comando Militar do Planalto),
• Marco Antônio Freire Gomes (Exército),
• Ridauto Lúcio Fernandes (Logística da Saúde).

Todos alvo de pedidos de indiciamento pela CPMI à Procuradoria Geral da República. No total, cerca de 30 “kids pretos” integraram o governo, alguns deles da ativa, como Mauro Cid, e outros dois ajudantes de ordens, os “kids” Cleiton Henrique Holzschuck e Marcelo Costa Câmara, este encarregado também de coordenar um sistema de inteligência do Palácio do Planalto, que o próprio ex-presidente chamou de sua “Abin paralela”.

Como são recrutados

Os “kids pretos” são recrutados entre militares da ativa e da reserva:
• homens de boa saúde,
• preparo físico e QI acima da média,
• perfil de dissidente ou descontente que, bem adestrado nos centros de instrução, podem formar um pequeno exército de pronto emprego para ações letais cujo desfecho é mantido em absoluto sigilo.

A preparação, até que esteja pronto para entrar em ação, demora um ano e sua permanência na tropa tem duração média de 10 anos. As forças especiais foram criadas no final dos anos de 1950 e dos integrantes que deixaram a tropa se originaram outros grupos de elite, entre os quais o Batalhão de Operações de Polícias Especiais (Bope), do Rio de Janeiro.

Por se tratar de força de infiltração em ambientes adversos, o critério indispensável de ingresso é ter concluído os cursos de paraquedismo, passagem obrigatória para avançar nos treinamentos que, além da parte física, exigem capacidade mental e preparo psicológico para agir em ambientes adversos do País, seja na caatinga nordestina, Amazônia, no pampa gaúcho ou em regiões metropolitanas.

Na área da Copesp, em Goiânia, o centro de treinamento separado da comunidade por uma faixa de duas cercas de arame, a dois metros uma da outra, os agentes utilizam também simuladores para aperfeiçoar tanto o salto de paraquedas quanto a pontaria nos treinamentos de tiro.

Os militares das forças especiais devem estar prontos para “qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira” e, por mais dura que seja a tarefa, é necessário usar “o ideal como motivação. A abnegação como rotina. O perigo como irmão. A morte como companheira”.

A retórica do grupo é ilustrada pela imagem de uma faca cravada na caveira e uma mística inspirada no monopólio do patriotismo e num anticomunismo que ainda enxerga o oponente como inimigo interno.

Das academias aos cursos avançados às forças especiais, os militares aprendem que a ditadura de 1964 foi um movimento para salvar o Brasil e que o extermínio à Guerrilha do Araguaia (1972/1975) — onde dois terços dos militantes do PCdoB foram executados por integrantes das forças especiais depois de feitos prisioneiros — foi uma guerra de guerrilha na selva, vencida pelas forças regulares que evitaram que a Amazônia se transformasse em satélite dos países da “cortina de ferro”.

É uma cultura que explica como uma parcela importante do militarismo, bancada por recursos públicos, uniu-se ao bolsonarismo. Levantamento da CPMI mostra que, em 2020, as forças especiais consumiram R$ 43 milhões para se manter ativas.

Os “kids pretos” são conhecidos também como “caveiras”: o lema é a morte como companheira (Crédito:Sergio Dutti)

O que são as Forças Especiais

As Forças Especiais do Exército se dividem em três unidades de pronto-emprego em ações operacionais: uma em Niterói, base dos paraquedistas, outra em Manaus, especializada em guerra na selva, e a terceira e mais bem preparada, em Goiânia, subordinada ao 1°Batalhão de Forças Especiais, onde estão subordinados os “kids pretos”, considerada uma unidade de alta complexidade em operações de combate.

No total, são mais de 2.500 homens, dos quais, cerca de 400 são a elite da tropa, capacitada em missões por terra, ar e água, com deslocamento rápido para qualquer ambiente do País em todos os tipos de combate.

Uma das principais missões dos “kids” é a infiltração em ambientes, o que exige como critério indispensável para o ingresso na tropa cursos de paraquedismo.

No complexo militar do Comando de Operações Especiais (Copesp), instalados numa faixa territorial contínua de 3,4 quilômetros quadrados na região norte de Goiânia, próxima ao Aeroporto da cidade, são separados da vila militar, onde vivem mais de 27 mil pessoas, por muros altos e cercas duplas de arames e concertina.

Lá, recebem um completo cardápio de treinamento intensivo: exercícios físicos, defesa química, biológica, radiológica, nuclear e psicológica.