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“O Brasil pode contribuir para atenuar os impactos do conflito”, diz Oliver Stuenkel, da FGV

Crédito: Silvia Zambon

Oliver Stuenkel acha que disputa entre potências travará resolução no Conselho de Segurança da ONU (Crédito: Silvia Zambon)

Por Marcos Strecker

Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na FGV, é difícil imaginar uma situação que tivesse uma capacidade tão grande para ampliar a polarização no mundo. Essa é uma das consequências do conflito entre Israel e o Hamas. E o fenômeno das redes sociais completa um quadro preocupante, ao estimular discursos simplistas e ameaçar na prática as democracias. Stuenkel é atualmente um dos mais importantes analistas do cenário mundial no País, com estudos aprofundados do papel da diplomacia brasileira no panorama internacional. Ele elogia o papel do Itamaraty e do presidente Lula na atual crise, com um eficiente trabalho de repatriação dos brasileiros e um protagonismo equilibrado no Conselho de Segurança da ONU, beneficiado pelos laços históricos do País com a comunidade árabe e judaica. Acha que a maior contribuição pode ser no sentido de diminuir os efeitos nocivos da guerra e debater um possível cessar-fogo. Mas considera que uma solução é difícil no colegiado da ONU, travado pela disputa entre as grandes potências. Na opinião do especialista, Israel corre o risco de repetir o erro dos EUA após o 11 de Setembro e se isolar internacionalmente.

O trabalho brasileiro de repatriação foi exemplar. Como o sr. vê esse esforço do governo e como ele se compara ao de outros países?
O Brasil tem a maior rede diplomática da América do Sul e uma das maiores do mundo, com uma vasta experiência não apenas geopolítica, mas também sobre como proceder em casos que requerem uma estrutura logística. Há um consenso de que o Itamaraty faz um excelente trabalho. E se o Brasil puder ajudar cidadãos de outros países latino-americanos, isso inclusive pode melhorar a relação com essas outras nações.

O presidente Lula vai aumentar seu protagonismo internacional com esse conflito, inclusive à frente do Conselho de Segurança?
Há dois pontos. O primeiro é que, como o confronto entre Israel e o Hamas agora ocupa boa parte do noticiário internacional, controvérsias do passado – em relação à Ucrânia, por exemplo – por enquanto são esquecidas. A retórica do presidente em relação à Ucrânia causou bastante fricção, sobretudo com países ocidentais, e de forma desnecessária, porque o Brasil ganhou muito pouco com o episódio. No caso do atual conflito, Lula soube evitar as polêmicas e tem se beneficiado do fato de o Brasil presidir temporariamente o Conselho de Segurança. Isso dá ao País a capacidade de pautar a agenda. O Brasil possui relações com Israel, tem laços com a Palestina, possui uma grande população judaica, uma grande população da diáspora árabe.

O fato de o País ter essa ligação com o mundo árabe e com Israel pode ajudar num acordo no Conselho de Segurança da ONU?
A princípio, sim. O Brasil tem uma reputação a princípio positiva nos dois lugares, o que não é tão simples. Mas ao mesmo tempo é preciso reconhecer que o Conselho de Segurança novamente está passando por um momento de paralisia. É reflexo de uma piora na relação entre as grandes potências: de um lado, as ocidentais, e de outro, a Rússia e a China. A atuação do Brasil é muito importante para tentar avançar com algumas questões, nem que sejam pontuais. Aí sim o papel no Conselho pode ter um impacto positivo. Ninguém hoje vai negociar um acordo de paz entre Israel e Palestina. O Brasil está fazendo um bom trabalho e está muito presente, atua de forma calma, sem buscar os holofotes de forma excessiva. Acho que tem potencial de dar uma importante contribuição na busca de atenuar impactos negativos do conflito ou facilitar um possível cessar-fogo.

“Lula soube evitar as polêmicas e tem se beneficiado do fato de o Brasil presidir o Conselho de Segurança da ONU. Isso dá ao País a capacidade de pautar a agenda” (Crédito: Ricardo Stuckert / PR)

A guerra está aumentando a polarização entre a esquerda e a direita. Ela pode fomentar o extremismo?
Se a gente tivesse que desenhar um caso fictício de algum conflito com o objetivo de causar o pior tipo de polarização, não conseguiria reproduzir o que essa guerra está conseguindo. O governo nacionalista israelense tem elementos de extrema direita adotando uma linguagem que contradiz pilares básicos do direito internacional, basicamente usando uma linguagem sugerindo que Israel vai adotar uma punição coletiva contra a população civil da Palestina pelos ataques terroristas do Hamas. Isso é uma festa para aqueles que desejam promover narrativas simplistas e polarizantes dos dois lados. Isso a gente está vendo no mundo inteiro. Temos um conflito em que, independentemente do lado em que você estiver, há queixas históricas, dor, sofrimento e injustiças sistemáticas dos dois lados. Qualquer um pode usar injustiças para desenvolver a narrativa que quiser. E você mistura isso com as redes sociais, onde os algoritmos dão preferência aos vídeos que polarizam. Isso é muito preocupante, porque é difícil debater hoje esse assunto de forma produtiva. Isso reflete as ameaças que as redes sociais representam para a democracia.

Se a ação de Israel em Gaza terminar com uma tragédia humanitária, isso pode isolar o país internacionalmente?
Sem dúvida. Acho que há um risco real de Israel reagir como os EUA responderam ao 11 de Setembro. O atentado terrorista inicialmente provocou muita simpatia ao redor do mundo. Mas o país, em estado de choque, acabou fazendo exatamente o que Osama bin Laden queria: envolver os EUA em conflitos que não tinha como ganhar, basicamente inflamando a relação com o mundo muçulmano. Demorou duas décadas para os EUA tirar as tropas do Afeganistão e muitos anos para tirar do Iraque. Acho que Israel deve se perguntar: “O que o Hamas quer que eu faça depois desse conflito?” Para mim, a resposta é que o Hamas deseja que Israel inicie uma incursão por terra em Gaza e tente ocupar a região, o que levaria a muitas batalhas urbanas sangrentas, inflamando a relação entre Israel e o mundo árabe. Foi justamente essa relação que Israel estava normalizando, e o objetivo do ataque é travar esse processo.

Os acordos de Israel com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão estão em risco? E as negociações com a Arábia Saudita?
Israel precisa tomar muito cuidado para não reverter os muitos avanços que foram feitos nos últimos anos. Esse é um risco grande. No sul global, a imagem israelense é muito pior do que na Europa e nos EUA. Mesmo se houver uma ocupação envolvendo um alto número de vítimas civis de Gaza, países como EUA e Alemanha não deixarão de apoiar Israel. Mas você tem atualmente uma esquerda mais radical nos EUA, uma ala no Partido Democrata que é muito mais crítica em relação a Israel. E no caso da Alemanha, você tem, em função da imigração, parcelas da população que são mais céticas em relação a Israel e que em alguns casos se juntam com a extrema direita. Em alguns casos, criam-se aliados estranhos, que concordam apenas nesse conflito entre Israel e o Hamas. Certamente Israel precisa tomar muito cuidado, porque não se trata apenas de um confronto militar, mas também de uma guerra de narrativas.

O conflito pode se estender para outros países e envolver, por exemplo, o Hezbollah, no Líbano? O Irã conseguirá unir os países árabes contra Israel?
O Irã estabeleceu há bastante tempo o Hamas e o Hezbollah como uma extensão da sua influência, o que permite conduzir ataques sem entrar oficialmente no conflito. Acho pouco provável o Irã entrar diretamente no conflito, porque Israel é uma potência nuclear. Mas isso não quer dizer que o Irã não possa dedicar muitos recursos para que o Hezbollah aumente ou intensifique seus ataques. Em 2006, houve ataques pontuais do Hezbollah contra Israel, inclusive com vítimas do lado israelense, e a resposta de Israel foi tão feroz que diminuiu o apoio popular ao grupo. Mas é preciso tomar cuidado para não achar que todos esses atores atuem de forma totalmente racional. Não podemos descartar a entrada do Hezbollah no conflito, e é justamente essa possibilidade que levou os EUA a se posicionar, retoricamente e militarmente, com a presença de dois porta-aviões.

“Netanyahu é odiado. Não tem como aparecer em público sem risco de ser vaiado. O cenário mais provável é a carreira dele acabar depois do conflito“ (Crédito:Jacquelyn Martin)

O premiê Netanyahu foi muito criticado em Israel. A carreira política dele vai acabar depois dessa guerra?
Sem dúvida o atual conflito é o mais difícil, mas eu não subestimaria a oportunidade que esse choque coletivo traz para ele. Vale lembrar que, depois dos ataques do 11 de setembro, a taxa de aprovação do George W. Bush foi para 80%. Claro que o americano não tinha o histórico do Netanyahu, que realmente é odiado por parte do eleitorado. Netanyahu não tem como aparecer em público sem um altíssimo risco de ser vaiado ou atacado. Acho que o cenário mais provável é a carreira dele acabar depois do conflito, independentemente do resultado, mas com a grande ressalva de que o Netanyahu tem uma capacidade enorme de se manter no poder. A segunda ressalva é que guerras têm impactos completamente imprevisíveis na opinião pública. Zelensky, por exemplo, era um político pouco expressivo antes do conflito entre a Rússia e a Ucrânia e conseguiu se tornar um dos políticos mais populares do mundo.

A solução de dois Estados ainda é possível?
A princípio a resposta é não, porque guerras sempre radicalizam e intensificam ainda mais a mágoa, a percepção de injustiça. Esse não é um bom momento para ter conversas em que é preciso ceder. É difícil virar a página quando milhares de pais estão enterrando seus filhos, e todo mundo, tanto palestinos quanto israelenses, conhece vítimas do conflito. É algo muito difícil de imaginar. Se for preciso apontar para um único problema ao longo dos últimos 30 anos, é que os dois lados tiveram lideranças que não tiveram vontade, não foram capazes de construir e implementar um acordo de paz. É difícil dizer exatamente como isso aconteceu, mas me parece que o Netanyahu se sentiu confortável com o Hamas se fortalecendo. E o Hamas, obviamente, também facilitou o trabalho do Netanyahu.

Mas, depois da Primeira Intifada, houve o Acordo de Oslo. Agora, a guerra pode paradoxalmente abrir caminho para um acordo?
Qual seria o melhor dos mundos? Que essa incursão produzisse menos vítimas do que hoje se teme, mas que conseguisse enfraquecer o Hamas a ponto de viabilizar a ascensão de lideranças mais pragmáticas. E que, no fim do conflito, o Netanyahu caia e novas eleições levem ao poder em Israel novos líderes mais moderados. Mas sou muito cético em relação a esse cenário. Tivemos esse panorama com o (Yitzhak) Rabin, e ele foi morto por um extremista israelense. Quem acompanha esse conflito há muitos anos fica cauteloso. Mas, obviamente, também não se deve deixar de considerar oportunidades para, quem sabe um dia, existir uma nova tentativa séria de construir um acordo de paz.