Comportamento

PEC do Plasma: saúde pública pode sofrer consequências graves

A aprovação de emenda que permite a venda de plasma levanta debate sobre os impactos que a sua comercialização pode ocasionar no sistema de saúde do País. A redução de estoque, ausência de fiscalização e interferências em tratamentos estão entre as graves consequências

Crédito:  Ton Molina

Na CCJ: manifestantes contrários à PEC que quer colocar empresas privadas no setor sanguíneo (Crédito: Ton Molina)

Por Ana Mosquera

“Sangue não é mercadoria”, diziam cartazes de um lado. “Eu sou a favor da vida”, alguns falavam no outro extremo. Na última quarta-feira, 4 de outubro, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) a PEC 10/2022, conhecida como a PEC do Plasma, que permite a comercialização do componente sanguíneo. Se a Proposta de Emenda Constitucional for aprovada no plenário e depois na Câmara dos Deputados, empresas privadas poderão atuar na produção e comercialização de hemoderivados, hoje restrita à estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia), e doadores terão a possibilidade de receber compensação financeira.

A doação de sangue é voluntária e considerada altruísta, podendo ser ainda mais prejudicada com a mudança na Constituição. Hoje, apenas 1,4% dos brasileiros realizam o ato no País.

“É importante ter em mente que não estamos discutindo sobre medicamento inócuo. A discussão orbita em torno de um tecido humano vivo e por isso a necessidade de regulamentação”, esclarece Carolina Costa Lima Salmoiraghi, diretora de coleta de doadores do Hemocentro da Unicamp.

Desde 1988, a Constituição brasileira impede a venda de órgãos e sangue, que é o que a PEC do Plasma tenta modificar. A alteração constitucional sobre o tema, contudo, pode ter consequências muito graves, de ordem:
• sanitária,
• social,
• política,
• e econômica.

“O setor mais vigiado do hospital é o banco de sangue. Tudo que envolve o ciclo é rigorosamente fiscalizado pelo poder público e essa PEC quer tirar esse monopólio”, compartilha.

Além de comprometidas a qualidade e a segurança da substância, a aprovação da venda deve acarretar concorrência entre empresas, redução dos estoques e impactos diretos no tratamento de pacientes da rede pública e privada.

A inserção das particulares na produção de medicamentos ainda pode prejudicar a evolução da Hemobrás, que deve atingir a autossuficiência em hemoderivados em 2025, já que o preço da matéria-prima passaria a ser regulado pelo mercado internacional.

Hoje, 30% dos fármacos ofertados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) provêm do plasma fracionado, doado no País.

O que é plasma?

• Líquido amarelado que corresponde a 55% do volume sanguíneo. É composto de água, sais minerais e proteínas

• Por carregar anticorpos, é responsável pela defesa do organismo e eficaz no tratamento de uma série de doenças

• Pessoas com cirrose, alteração de coagulação ou deficiências de fatores dependem de transfusões do componente

• Fracionado, também é utilizado na produção de hemoderivados como albumina e imunoglobulina

Votação: Daniella Ribeiro (PSD-PB) é relatora da proposta de emenda que passou na comissão por 15 votos a 11 (Crédito:Geraldo Magela)

Ao viver, na prática, a queda diária de volume de sangue no hemocentro de uma das principais universidades do País, na cidade paulista de Campinas, Carolina demonstra preocupação.

“Como acha que vamos ficar nesse cenário? A partir do momento que liberarem a comercialização do plasma haverá competição com o sangue total.”

A forma como a decisão pode atingir de forma desigual pessoas de diferentes classes sociais também está em questão. Segundo a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), em comunicado oficial, há estudos sugerindo que a comercialização deva atrair os mais vulneráveis financeiramente, como vendedores, ao passo em que facilita o acesso a quem pode pagar, enquanto receptores. “Você imagina o perfil do doador que vai atrás de vender o plasma para comprar o pão do dia seguinte!”, alerta ela.

“Mexer nesse processo, que é importante e virtuoso, poderá levar a um apagão.Vai impactar nas doações.”
Nísia Trindade, ministra da Saúde

A votação da PEC de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), com parecer da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), teve 15 votos favoráveis e 11 contrários, entre eles o do senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do Governo no Senado: “O que precisamos é transferência de tecnologia, que é o que a Hemobrás está fazendo, ou nós vamos ficar eternamente dependendo de fora.”

A diretora Carolina segue o mesmo raciocínio: “Tudo que foi construído em um terreno sólido no Brasil vai por terra se a PEC for aprovada.”