O circo das CPIs frustradas: ofensas, deboche e muita pizza
Bate-bocas, xingamentos, falta de preparo e disputas ideológicas marcaram as seis primeiras comissões de investigação abertas por deputados federais e senadores na atual legislatura. Ao final, todas elas terminaram em pizza
Por Samuel Nunes
RESUMO
• Investigações de 8 de Janeiro e Lojas Americanas mostraram falta de seriedade
• Debates nos colegiados acabaram com deputados e senadores em bate-bocas lamentáveis
• Ineficiência dos parlamentares e ausência de convocações são a marca registrada da atual legislatura
• Foram perdidas oportunidades para identificar culpados por atos graves que impactam a vida dos cidadãos
A discussão entre a senadora Soraya Thronicke (União-MS) e os deputados federais Marco Feliciano (PL-SP) e Abílio Brunini (PL-MT), ocorrida durante a última reunião da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, realizada na terça-feira, 3, sintetizou o nível dessa e das outras cinco comissões de investigação abertas por deputados e senadores na atual legislatura. No lugar de seriedade e compromisso com o dever público, o que se viu nos últimos meses em Brasília foi uma mistura de bate-bocas, xingamentos, falta de consenso e a clara demonstração da ineficiência desses colegiados no Congresso.
O imbróglio entre os parlamentares começou no final da interpelação que Thronicke fazia ao empresário Argino Bedin, suspeito de ter financiado as ações golpistas que culminaram nos ataques de janeiro. Como ele tinha o direito de ficar em silêncio, a senadora aproveitou o tempo das perguntas para atacá-lo.
Quando estava quase terminando, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) imitou uma onça ao microfone, o que deu início à discussão, já que Thronicke é oriunda do Mato Grosso do Sul, habitat desse tipo de animal. Irritada, a senadora disse que só voltaria a se dirigir ao grupo da oposição se Feliciano lhe dissesse onde havia feito a sobrancelha. O paulista, então, respondeu que ela estava sendo homofóbica.
O presidente da CPMI, Arthur Maia, interveio e acalmou os ânimos temporariamente. No entanto, minutos depois, a temperatura no plenário voltou a subir, quando Brunini retomou o tema e citou a senadora, que ganhou mais três minutos para responder aos ataques, dando início a nova discussão entre os parlamentares, que se seguiu por mais alguns minutos.
A briga teve ainda citações à aplicação de botox, cirurgias de bichectomia e outros assuntos que nada tinham a ver com o investigado e as suspeitas de patrocinar os atos golpistas.
Ao final, Brunini, que também havia atacado os parlamentares de esquerda, no discurso em que exaltou Bedin, já estava abraçando o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, em um pedido de desculpas pela exaltação da direita.
A cena lamentável representou boa parte do desenrolar da CPMI, que deixou de ouvir figuras importantes tanto do governo quanto da oposição, que poderiam ter algum tipo de ligação direta com a tentativa de golpe.
Do lado do governo, depoimentos como os do ministro da Justiça, Flávio Dino, dariam a possibilidade de esclarecer melhor a falta de atuação mais eficaz da Força Nacional para debelar os manifestantes extremistas.
Na oposição, a falta da convocação de figuras centrais como o ex-presidente Jair Bolsonaro impediu o esclarecimento das razões que levaram seu governo a não acabar com as manifestações golpistas tão logo elas se iniciaram defronte aos quartéis.
Mesmo assim, o relatório produzido pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA) deverá ser entregue nas próximas duas semanas. À ISTOÉ, ela reconheceu que houve dificuldade para trabalhar ao longo dos últimos meses, principalmente pelas tentativas da oposição de obstruir o andamento das sessões, com discussões alheias ao objeto da CPMI.
“Acho que em algumas vezes se baixou muito nível, havia ataques muito rasteiros. Isso foge do ambiente civilizatório que precisa ter em um plenário do Congresso. Lamento, apesar de isso mostrar que este plenário tem uma composição muito diversa.”
Senadora Eliziane Gama, relatora
Sem consenso com a pauta final e com previsão de falta de quórum, a última sessão de depoimentos, que seria realizada na última quinta-feira, 5, foi suspensa.
Sem resultados
O fracasso da CPMI do 8 de Janeiro, que prometeu escancarar o lado dos financiadores do grupo responsável pelos ataques golpistas, não é o único desta legislatura.
Das outras cinco investigações abertas por deputados e senadores neste ano, três se encerraram sem ter sequer a votação do relatório final. As outras duas também tendem à ruína, seja pela ineficiência ou pela falta de imparcialidade dos membros.
Na Câmara, foram abertas quatro investigações simultâneas. Uma das mais importantes do ponto de vista público era a que investigaria a fraude nas Lojas Americanas. O rombo de R$ 40 bilhões no caixa da empresa prejudicou milhares de investidores e credores.
No entanto, ainda que fosse óbvia a necessidade, os parlamentares não convocaram nenhum dos três sócios da controladora da empresa. Com isso, Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira sequer foram mencionados no relatório produzido pelo deputado Carlos Chiodini (MDB-SC).
A falta de inclusão dos três empresários no relatório levou os parlamentares a discordarem entre si. Aliás, o documento era tão raso que não apontava nenhum culpado pela fraude. Diante disso, a comissão se encerrou sem a votação do relatório produzido pelo parlamentar catarinense.
Já a CPI do MST, que também terminou sem a aprovação do relatório de Ricardo Salles (PL-SP), sofreu com a parcialidade da mesa e da maioria dos integrantes, claramente contrários ao movimento.
Os depoimentos também foram, na maioria dos casos, evasivos e sem grandes esclarecimentos. Em vez disso, e em boa parte deles, os depoentes ironizaram os deputados conservadores, como na ocasião em que o professor da UnB José Geraldo de Souza Júnior desmontou um discurso proferido pela deputada Caroline de Toni, contra o movimento sem-terra.
A própria parlamentar sentiu o golpe e acusou o docente de tê-la chamado de burra. Apesar de, no início, a maioria dos integrantes da CPI ser composta por deputados de direita, o governo reverteu a situação e, depois que o Republicanos e o PP embarcaram no ministério de Lula, a oposição ficou em desvantagem na comissão.
Os partidos do Centrão decidiram trocar alguns membros e garantiram que o relatório, que pretendia indiciar 11 pessoas ligadas ao MST, terminasse sendo arquivado.
Situação semelhante ocorre com a CPI das ONGs, que está em andamento no Senado. Ainda longe do encerramento do prazo, o colegiado também sofre pela falta de imparcialidade dos líderes. Os senadores Plínio Valério (PSDB-AM) e Márcio Bittar (União-AC) sempre se colocaram publicamente contra a atuação de várias ONGs que atuam na Amazônia, objeto da apuração.
No entanto, diferentemente da CPI do MST, até o momento grupos de oposição dominam com sobra o colegiado, o que poderá facilitar ao menos a aprovação do relatório final, ainda que enviesado.
Na prática, isso quer dizer que, mesmo que haja algum indício de irregularidade, a chance de ela também terminar em pizza é enorme.