Direita, esquerda e os negros

No Brasil das contradições gritantes, a representação parlamentar diz quase tudo dos seus absurdos. A participação dos negros na vida política significa uma subversão da racionalidade que transforma maioria social em minoria política. A representação dos negros no Congresso Nacional é a perfeita manifestação de profundo apartheid. O que divide negros e brancos no País e, por consequência, a expressão acabada da inconcebível e ilógica contradição entre República, democracia e Estado democrático de Direito é a materialização definitiva daquilo que se concebeu denominar estado inconstitucional das coisas, no qual o princípio republicano de um homem um voto não garante igualdade de participação parlamentar isonômica.

Os senadores e deputados federais negros autodeclarados são contáveis com os dedos das mãos, num universo de quase seiscentos congressistas. E o mesmo acontece com governadores, prefeitos, deputados estaduais e vereadores, frente ao contingente de 54% de negros, como aponta IBGE. O patrimonialismo, o clientelismo e o racismo estrutural explicam grande parte da questão, mas a atitude e a postura transgressora dos partidos políticos dizem muito mais e tem contribuído para aprofundar essa situação.

Nessa legislatura os partidos chegam ao fundo do poço da ambigüidade do cinismo e desrespeito aos eleitores. Além de não cumprirem integralmente as regras de repasse das verbas do fundo eleitoral para as candidaturas dos negros nessa eleição de 2022, seus parlamentares construíram proposta de emenda constitucional para garantir plena
e total anistia aos malfeitos. De novo, pois o primeiro descumprimento foi nas eleições de 2018.

Pelas propostas, todos os dez partidos com as maiores bancadas que não cumpriram corretamente a lei serão inalcançados por ela e ainda não poderão sofrer qualquer tipo de sanção pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não haverá suspensão dos repasses, não serão obrigados a fazer a devolução dos recursos e não sofrerão aplicação de multas, conforme texto em curso na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos deputados.

Além do pasmo pelas medidas, o pasmo maior é que tanto PL quanto PT, isto é, da direita à esquerda, todos se juntaram na agressão. Violaram e desfiguraram sem pudor a norma e a política afirmativa inovadora que pretendia equilibrar e garantir a diversidade de vozes e opiniões das minorias tradicionalmente excluídas do processo político.

Enfim, a norma que, a duras penas, tentam incluir para garantir a maior e mais equilibrada presença dos negros parlamento pode ser invalidada. A se consumar a transgressão, novamente os negros ficarão excluídos, do lado de fora parlamento, como tem acontecido nos últimos 135 anos pós-abolição.