Comportamento

O perigo iminente das superbactérias

Número de mortes por agentes microbianos resistentes a medicamentos pode se igualar ao de óbitos por câncer em menos de três décadas. O uso abusivo e inadequado de antibióticos e estresse do sistema de saúde estão entre as principais causas desse fato assustador

Crédito: Gutemberg Brito/IOC/Fiocruz

Ampliado: microrganismos deixam de responder às drogas (Crédito: Gutemberg Brito/IOC/Fiocruz)

Por Ana Mosquera

Houve 1,3 milhão de óbitos devido à infecção por superbactérias no mundo em 2020, segundo a publicação científica The Lancet. As mortes devem chegar a 10 milhões, e superar o câncer, em 2050, de acordo com a previsão do economista Jim O’Neill, reafirmada esse ano em relatório da ONU. Os dados são alarmantes e a agregação do prefixo super, que significa proeminência, não colabora. Assim como esses seres microscópicos são importantes – a exemplo dos probióticos presentes na microbiota intestinal –, a resistência faz parte de sua condição de vida. “À medida que descobrimos os antibióticos e começamos a usá-los, passamos a matar aquilo que era sensível a eles e a deixar crescer o que era resistente”, diz Anna Sara Levin, professora titular de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP.

Dois anos após a descoberta de Alexander Fleming, em 1928, as primeiras células biológicas resistentes à penicilina já começaram a aparecer, como explica Gabriel Berg, professor do Departamento de Infectologia da Faculdade de Medicina da Unesp, na cidade paulista de Botucatu, no podcast Prato do Dia.

(Divulgação)

É dentro dos hospitais, casa dos antibióticos e das pessoas com saúde debilitada, que ainda mora a maior parte do problema, acentuado em períodos de crise sanitária, como o da Covid-19.

O estresse causado no sistema de saúde, comprovado pela ausência de leitos e a contratação emergencial de novos profissionais, comprometeu medidas de controle de infecção. A simples higienização das mãos na troca de pacientes foi afetada, para não falar no desconhecimento sobre a necessidade da utilização dessas drogas no combate à Covid.

Se a conexão entre a Influenza (vírus causador da gripe) e as infecções bacterianas já era evidente, demorou-se para desvendar que com o coronavírus seria diferente. A aplicação medicamentosa de maneira inadvertida contribui demais para a circulação desses invisíveis seres poderosos.

“Estamos expondo cada vez mais essas bactérias, elas têm ganhado mecanismos de resistência e vamos ficando sem opções terapêuticas para doenças potencialmente graves que elas geram.”
Gabriel Berg, professor da Unesp

O professor conta que a taxa de infecção pelo agente KPC, causador da pneumonia e outros males, que vinha caindo, agora triplicou.

Colônias são armazenadas em nitrogênio líquido no laboratório do Instituto Oswaldo Cruz: reunião de dados permite mapeamento dos perfis de resistência (Crédito:fotos: Gutemberg Brito/IOC/Fiocruz)

Mocinho e vilão

Segundo a professora Sara, “não há mocinho ou vilão”. Além do uso indiscriminado de medicamentos, do sistema de saúde saturado e da falta de interesse da indústria farmacêutica em produzir remédios que serão logo superados, a utilização de promotores de crescimento da agropecuária e a falta de saneamento básico estão na raiz do avanço dos microrganismos superiores.

Em um País de dimensões continentais e de abismos sociais como o Brasil, mapear bactérias e as causas de sua proliferação é tarefa ainda mais difusa.

“É preciso ter dados robustos e reais, reconhecendo o que está acontecendo nos hospitais e quais são os perfis de bactérias, para que o Ministério da Saúde e a Anvisa proponham ações de combate”, diz Ana Paula Assef, chefe do Laboratório de Bacteriologia Aplicada à Saúde Única e Resistência Antimicrobiana do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que executa dois projetos com esse intuito.

Ana Paula Assef, pesquisadora da Fiocruz: “A OMS tem chamado a atenção para enxergarmos o problema que perpassa todas as pandemias” (Crédito:fotos: Gutemberg Brito/IOC/Fiocruz)

A preocupação com tais organismos, lembra a bacteriologista Assef, faz parte do conceito de Saúde Única (One Health), que une cuidado com humanos, animais e meio ambiente. “Precisamos de medidas globais de controle do uso de antibióticos na pecuária”.

Enquanto a Europa restringe os medicamentos em animais sadios desde 2018, o Brasil ainda permite a administração de dois componentes, a bacitracina e a virginiamicina. Há uma “pandemia silenciosa” das superbactérias e é preciso fazer barulho antes que as previsões já catastróficas se tornem realidade.