Internacional

Veneza sob risco: turistas e clima ameaçam destruir a cidade das gôndolas

Cidade aprova cobrança de taxa para visitantes com o objetivo de evitar a degradação ambiental, mas especialistas dizem que isso não será suficiente. Invasão de turistas e alterações climáticas ameaçam esse patrimônio da humanidade

Crédito: Stefano Mazzola/Awakening/Getty Images

Inundações cada vez mais frequentes prejudicam edifícios históricos e afugentam turistas (Crédito: Stefano Mazzola/Awakening/Getty Images)

Por Denise Mirás

Por séculos, mercadores, artistas e turistas deslumbrados com a singularidade de uma cidade construída sobre canais reviraram Veneza, suas praças e palácios, hoje alcançadas por lanchas velozes ou gôndolas de passeio, ao som de “O, sole mio”. Arquitetos estudaram sua engenhosa construção, escritores e cineastas imortalizaram suas estreitas vielas e subterrâneos, e namorados tiraram fotos na Ponte dos Suspiros (que na verdade eram suspiros de prisioneiros, que seguiam para a Prigione Nuove). Mas essa paixão por Veneza se transformou em desastre. Com a invasão alucinada de visitantes nos últimos anos e os eventos climáticos extremos — com o aumento da temperatura no planeta, há secas drásticas e frequência cada vez maior de inundações —, a cidade aprovou uma taxa turística de cinco euros por visitante “bate e volta”, que pouco gasta em um dia.

O teste ainda será em 2024, por 30 dias distribuídos entre feriados e fins de semana. A Unesco não considera essa cobrança suficiente para proteger Veneza, patrimônio histórico da humanidade desde 1987, e quer colocar a cidade em sua lista “de risco” para pressionar os governantes italianos a tomarem medidas urgentes e efetivas.

Boa parte da população veneziana se mudou para fora do centro — que chegou a somar 150 mil habitantes nos anos 1950 e hoje tem um terço disso. Muitos preferiram colocar suas casas no airbnb a “viver como estrangeiro em sua própria casa”, em meio a hordas de turistas que, segundo a prefeitura, ainda são responsáveis por 80% dos casos de vandalismo, incluindo pichações em prédios históricos.

A imprensa italiana teme que Veneza se torne uma “Disneylândia”, porque cada vez menos moradores são avistados indo a supermercados ou levando crianças à escola. É o mesmo fenômeno detectado em Barcelona, por exemplo, primeira cidade europeia a proibir o aluguel de quartos por menos de 31 dias.

Se providências urgentes e efetivas não forem tomadas, até o fim do século Veneza ficará sob 1,2 metro de água

A proposta da Unesco de colocar Veneza em sua lista “vermelha” — o que tiraria seu status de patrimônio histórico mundial — está sendo discutida na 45ª sessão de seu Comitê do Legado Mundial em Riad, na Arábia Saudita, que começou no dia 10 e vai até 25 de setembro.

A Itália está sendo acusada de não ter feito nada “de forma sustentada e substantiva, desde a última reunião, em 2021”, quando já se recomendava a classificação da cidade como “em perigo”.

Governantes não apresentaram soluções para “problemas de longa data”, segundo a Unesco, ainda mais com o impacto acelerado das alterações climáticas e do turismo de massa em uma das cidades mais singulares do mundo.

Se providências urgentes não forem tomadas, a previsão de ambientalistas é de que Basílica e Praça de São Marcos, assim como outros monumentos icônicos, estariam destruídas até 2050, com a cidade debaixo de 1,2 metro de água até o fim do século.

Visitantes seriam afugentados de vez. E se o turismo é um setor vital para o comércio local desde o século XVIII, o prejuízo se estenderia, com grande impacto, à economia da Itália como um todo.

Altos e baixos

Hoje, Veneza tem mais leitos para turistas (entre hotéis e locações por airbnb) do que seus 49 mil residentes no centro histórico.

Os 52 mil visitantes diários passam de 100 mil na alta temporada — somaram 1,4 milhão em 2021 e com certeza serão em número bem superior agora em 2023, no pós-pandemia.

Críticos assinalam a “abertura constante de hotéis” e a “falta de regulamentação” para locações de airbnb, o que mantém aluguéis nas alturas e esvaziam a cidade de residentes permanentes.

Mas o pior mesmo parecem ser as drásticas mudanças climáticas: em fevereiro último, a seca foi tão grave que nem táxis aquáticos nem gôndolas conseguiam navegar por alguns de seus canais. Um cheiro insuportável tomou a cidade, obrigando turistas a usar lenços para proteger o nariz e conseguir respirar.

Também são temidas as inundações fora da “acqua alta” que se dá entre o outono e o inverno, na baixa temporada do turismo. A esses períodos de maré cheia, considerados “normais”, edifícios históricos resistem há mais de mil anos. Mas as enchentes por toda a cidade estão cada vez mais frequentes. Agora em 2023 começaram bem mais cedo, ainda no verão, e a partir de agosto os turistas tiveram de circular por Veneza com água pelos joelhos.