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Entenda como medicina high-tech pode mudar sua vida

No século 18, foi a descoberta das vacinas; depois, a penicilina revolucionou a cura via antibióticos. Anos bem mais recentes trouxeram o avanço no tratamento de transtornos mentais. Agora, a ciência médica vive sua quarta revolução na história, que une o corpo humano à tecnologia

Crédito: Divulgação/Albert Einstein

Enfermeira-robô em tomografia computadorizada infantil no Hospital Albert Einstein acalma crianças, facilita realização de exames e evita sedação (Crédito: Divulgação/Albert Einstein)

Por Ana Mosquera, Denise Mirás e Luiz Cesar Pimentel

Desde que Hipócrates abriu as portas da medicina, no século 5 a.C., é possível listar três momentos de imenso avanço nos tratamentos de saúde: as descobertas das vacinas, no final do século 18, e dos antibióticos, em meados do 20, e a revelação de remédios para tratamentos de saúde mental, como antipsicóticos e antidepressivos, nos anos 1960. É seguro afirmar que vivemos uma quarta onda de pleno progresso científico, só que desta vez de maneira mais silenciosa — ele não é medido em gramas mas em bits e bytes. São evoluções e melhorias que abrangem toda a cadeia de tratamento médico, do diagnóstico à cura, passando pela consulta e procedimentos. E a revolução não para por aí, já que envolve a formação dos profissionais de saúde e o uso que fazemos de utensílios, como celulares e todos os promissores wearables (vestíveis).

A mudança tem como componente principal, além do avanço tecnológico, a abordagem dos protocolos, para uma utilização do aprendizado das máquinas em incremento preditivo.

Se o que conhecemos como assistência tradicional são dados de saúde coletados de modo intermitente, durante consultas presenciais, e fichados em prontuários para acompanhamento, a virada de mentalidade e atitude passa a operar com atendimento contínuo para alcance de antecipação à doençaas análises acontecem em tempo real, com auxílio de gadgets e wearables, tornando o tratamento participativo e personalizado.

Exemplo da tecnologia vestível são os monitores de condicionamento físico, em formato de relógio que passam a operar como instrumentos de prevenção, detecção, diagnóstico e terapia.

Até chegar ao que vem sendo desenvolvido em laboratórios científicos e tecnológicos (muitas vezes em conjunto), é prudente conhecer o caminho já andado e o que é realidade terapêutica.

As principais evoluções partem da aplicação da Inteligência Artificial (IA), com:
* a melhora do aprendizado de máquinas,
* os facilitadores de atendimento virtual,
* procedimentos robóticos em cirurgias,
* a Internet das Coisas.

Por imagem: sala de laudos mostra banco de dados aplicado à inteligência artificial para auxiliar nos diagnósticos no Hospital Albert Einstein (Crédito:Egberto Nogueira)

Ganho de eficácia

Na raiz da IA, está a compilação de vastas bases de dados e processamento das mesmas com refinamento do aprendizado de máquinas pela extração de padrões.

Com isso, houve desenvolvimento bem mais rápido de medicamentos. Um exemplo recente foi o corte no tempo estimado para a vacina contra a Covid.

Outra boa consequência é o salto na eficácia de diagnósticos, como, por exemplo, do câncer. A principal técnica há décadas é a biópsia, onde se extrai fragmento do tecido suspeito. Só que ela não fornece um quadro completo do órgão afetado.

Com a digitalização da região atingida é possível determinar com maior precisão eventuais mutações celulares e, a partir delas, ter quadro mais claro, aprimorar decisões e evitar atos desnecessários.

“Nas imagens, você tem algoritmos que apontam para as áreas suspeitas e ajudam a mapear nódulos do pulmão. É um suporte do diagnóstico por radiologia”, diz César Nomura, superintendente de Medicina Diagnóstica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

Biochips fazem hoje o trabalho em instantes que poderia levar dias, como identificação de origem bacteriana ou viral de infecção. Antes, havia somente o longo processo de hemocultura. A varredura pelo chip acontece em poucas horas.

Carlos Campos, médico do Incor: procedimentos com auxílio de telas têm menor perda de sangue, são minimamente invasivos e menor tempo de hospitalização (Crédito:Divulgação/Einstein)

A Internet das Coisas (IoT) significa a rede de dispositivos conectados com comunicação facilitada entre eles e a nuvem. Aparelhos de monitoramento são onde a medicina a encontra, principalmente smartwatches, que coletam dados e os repassam ao médico para acompanhamento remoto sem tirar pacientes das atividades rotineiras.

“Não é mais fantasia do futuro, já é o presente”, diz Linamara Rizzo Battistella, professora em Medicina Física e Reabilitação e diretora do Centro Colaborador da OMS para Reabilitação.

Sensores em forma de adesivos para pele:
* medem níveis de açúcar no sangue,
* medem frequência da respiração,
* realizam eletrocardiogramas para detecção de arritmias,
* transmitem tudo isso ao médico via bluetooth.

Previsão de trabalho de parto segue o mesmo método com adesivos no ventre da grávida para detecção de movimento do músculo uterino. E o pesadelo de mães de recém-nascidos tende a acabar com câmeras que detectam respiração do bebê na tela e emitem alerta em caso de apnéia.

Outra prática com ar futurista que já é aplicada envolve as Realidades Aumentada e Virtual. Por meio delas, é possível conectar ambientes digital e físico de maneira multidimensional, o que proporciona precisão em check-ups virtuais e a possibilidade de procedimentos cirúrgicos completos com a robótica como facilitadora.

Por meio de robôs, a destreza do cirurgião cresceu, já que melhora a precisão e permite intervenções menos agressivas.

“A tecnologia vai se adaptando à anatomia, mas o indivíduo que sofre a cirurgia ainda é o mesmo. A mecanização populariza a qualidade, mas tem que saber operar.”
Ricardo Abdalla, diretor médico do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Inovação em Cirurgia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Ganho de tempo, menor perda de sangue e manuseio de ferramentas com ambas as mãos são algumas das capacidades facilitadas no treinamento. “O contato prévio com a máquina ajuda a pegar prática, a ter noção de tridimensionalidade, a desenvolver a destreza”, diz o estudante da Faculdade de Medicina da USP Bruno Damico Terada.

Frio: o Incor tem capacidade de armazenamento de até 84 mil amostras de tecidos, sangue e partes de órgãos, acondicionados em frascos para baixas temperaturas (Crédito: João Castellano)

Soluções à distância

O atendimento remoto e a telemedicina são outras estratégias que economizam tempo e recursos, além da possibilidade de transformarem clínicas de atendimento primário em verdadeiros hospitais.

Nova tecnologia que vem sendo implantada no Hospital das Clínicas desde a pandemia é a Tele-UTI Obstétrica, em que casos graves de gestantes podem ser acompanhados à distância.

Na Amazônia, a ONG Zoé realiza expedições para populações ribeirinhas, por exemplo, facilitando consultas, exames e até cirurgias com médicos a mais de 10 mil quilômetros de distância. “

Você consegue fazer um eletrocardiograma dando o mínimo treinamento para a comunidade e fazendo o monitoramento básico à distância”, diz Nomura.

Em um projeto com empresas, o Sírio acompanha a saúde primária de mais de 200 mil pessoas de modo virtual.

“Com aplicativos, telemedicina e devices (aparelhos), apenas 10% das pessoas precisam sair de casa ou do trabalho para resolver seus problemas. Você desafoga hospital e ainda diminui os custos.”
César Nomura, superintendente de Medicina Diagnóstica do Hospital Sírio-Libanês

Além de simuladores e robôs, a IA contribui com a jornada nos bastidores. Conhecimento sobre leitos, agendamentos e indicadores de segurança são alguns dos processos agilizados pela tecnologia.

No Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, são 126 algoritmos funcionando nesse sentido, possibilitando, por exemplo, que o tempo de permanência na ala ortopédica seja 13% menor. “O centro de monitoramento parece uma sala de controle da NASA”, diz Sidney Klajner, presidente da instituição, sobre a necessidade de tirar atribuições mecânicas do homem.

Prever situações também está a cargo da medicina de precisão. “Durante a cirurgia, monitores dotados de inteligência artificial dizem qual a chance de o paciente ter uma queda de pressão arterial, o que faz o anestesista agir antes de um infarto ou AVC isquêmico acontecer. A tecnologia evolui para deixar a medicina mais previsível”, diz Gabriel Redondano, diretor técnico médico das unidades do Vera Cruz Hospital em Campinas, cidade do interior paulista.

Pioneira na região, a instituição acaba de bater a marca de 2000 cirurgias robóticas.

O Incor, Instituto do Coração de São Paulo, possui 1224 estudos em andamento e foi o primeiro a receber a alta tecnologia da Tomografia de Coerência Ótica (OCT) na América Latina.

Médico-assistente, Carlos Campos explica que o equipamento realiza a fusão da imagem do cateterismo “comum” com imagem do interior da artéria. “Dá para ver até célula. Detectamos placas de gordura e de cálcio em artérias do coração como se fosse em um microscópio e em tempo real”, diz.

A Inteligência Artificial atua para mostrar extensões e espessuras precisas, determinando pontos para se instalar o stent (tubo expansível que alarga a artéria para ajudar na passagem do sangue).

Rumo ao futuro

A saúde 5G está na mira de todos. O InovaHC é pioneiro no estudo sobre a tecnologia que encurtará mais distâncias no sistema. Projetos pilotos já comprovam a possibilidade de executar exames simples sem delay e a principal barreira para o avanço da transmissão 5G ainda é a falta de redes de telefonia em áreas remotas e periferias de grandes cidades.

O aprimoramento vai possibilitar de ultrassons a cirurgias robóticas à distância. “É fundamental para o progresso da saúde no País. A base da redução da desigualdade está na conectividade que permite realizar procedimentos complexos à distância”, diz Giovanni Cerri, professor da Faculdade de Medicina da USP e presidente do InovaHC.

Diante desse quadro, é possível olhar para o futuro e vislumbrar para onde a ciência caminha. A primeira conclusão é que haverá novo desenho da educação médica.

Treinamentos contemplarão estudos tecnológicos e pacientes eletrônicos, além de atualizações recorrentes. A dinâmica também mudará, já que a interação médico-paciente sofrerá alteração.

Todo o nosso sistema de relacionamentos mudou com a evolução tecnológica. A prospecção mais favorável de acerto, nesse sentido, é uma abertura para impulso da saúde.

Com a quantidade de distrações a nos rodear, o caminho seguro para cumprimento de rotinas motivadoras será incrementá-las com características de desafio, envolvendo os aplicativos coletores de dados.

Fato alarmante e que faz com que a prática se torne cada vez mais necessária são pacientes com doenças crônicas que não seguem os tratamentos por falta de motivação extra.

Os jogos também são recursos utilizados para tranquilizar os mais afeitos a eles: as crianças. No Hospital Israelita Albert Einstein, uma máquina de tomografia computadorizada com IA permite que se mantenham entretidos durante o processo. A enfermeira-robô Madá é apresentada ainda na sala de espera e, ao longo do procedimento, usa de voz calma, explicações e contação de histórias para tranquilizar os pequenos. Dessa forma, ganha-se tempo, evita-se a repetição do exame e a necessidade de sedação.

2000 cirurgias: robô manipulado por equipe médica especializada no Vera Cruz Hospital, em Campinas; urologia é a especialidade mais atendida e tempo de procedimento chega a ser 50% menor (Crédito:Matheus Campos )

O avanço da análise de DNA, com sequenciamento completo e acessível dos genomas, propiciará diagnósticos e tratamentos personalizados com requinte, já que considerará as características de cada indivíduo.

A personalização do tratamento conta também com a evolução da bioimpressão, que denota órgãos em tecidos vivos impressos em 3D.

A medicina regenerativa já produz em fase de testes córneas, orelhas, ossos e pele. A perspectiva na fila é que comecem a experimentar implantes cranianos e ortopédicos, próteses externas e stents, além de instrumentos médicos específicos para procedimentos.

Dispositivos médicos portáteis começam a ser aplicados em testes caseiros. Trata-se de aparelhagem de escaneamento sob orientação de profissional à distância que realiza o autodiagnóstico instantâneo dos sinais desejados.

Não levará muito tempo para que os smartphones assumam essa função. Já está em desenvolvimento aplicativo que transforma o aparelho em otoscópio para captar imagens do ouvido da criança e enviá-las ao pediatra. Ou equipar o celular com microfone que capte tosse e avalie o risco de desenvolvimento de pneumonia.

Ricardo Abdalla, diretor médico de laboratório de estudos avançados do HC: alunos e residentes aprendem a manusear as máquinas antes da realização prática de cirurgias (Crédito:Marco Ankosqui)

E um dos aperfeiçoamentos mais aguardados diz respeito aos trajes de exoesqueletos que permitem que pessoas com paralisação voltem a andar ou movimentar os membros incapazes.

O aparelho possui servos motores conectados às articulações e depende de aumento de precisão para que seja recriada inteligência de “sensibilidade” e comunicação em tempo real com o cérebro, para reprodução fiel dos movimentos de braços ou pernas.

Na revolução high-tech, só uma fórmula é certa: nada neutraliza o avanço científico.