A vida em outra dimensão

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Mentor Neto: "Eu não pulo, claro. Não porque não queira, mas porque faria um estrago na minha hérnia de disco. Mas é bom ver tanta energia" (Crédito: Divulgação)

Por Mentor Neto

A vida da gente acontece em camadas, já notou?

Camadas empilhadas umas sobre as outras.

A camada do trabalho, a da familia, a da política, a do dinheiro, das dívidas, da saúde e mais uma infinidade, dependendo dos interesses, necessidades e vontades de cada um.

E, pobres de nós, vivemos trafegando de uma camada para outra, aprisionados, às vezes sem nem ao menos perceber.

Vira tudo, sei lá, um caldo de existência.

Fácil se perder entre essas dimensões que compõe nossas vidas.

Mas às vezes, muito raramente, ocorre um bug na matriz.

Uma falha qualquer no sistema que rege nossas vidas e conseguimos dar uma espiada no que acontece fora das nossas próprias dimensões.

Sāo 2 da manha e estou saindo do autódromo de Interlagos depois de assistir ao show de Post Malone.

Um show desses não é coisa pra minha idade.

É coisa de gente jovem, diriam meus amigos igualmente velhos.

Basta olhar em volta para perceber que o cinquentão mais próximo deve estar à quilômetros de distância.

Fazer o que se gosto das músicas do sujeito?

A vida além de nossa própria existência

Então, há meses comprei o ingresso, sem perceber que estava comprando um passe para outra dimensão.

Agora estou à deriva num oceano de adolescentes.

Millennials e GenZ, as duas últimas gerações, para onde quer que olhe.

Sinto que despenquei numa camada que não é a minha.

Em meio a uma multidão, caminhamos todos colados um ao outro, pela pista do autódromo em direção ao palco.

Alguém grita “walking dead”. Tem quase razão no meu caso.

Já os adolescentes vivem em outro conjunto de dimensões.

Dos pais, da escola, quem sabe da dependência financeira.

E Post Malone, por sua vez, vive em dimensões ainda mais distantes das minhas.

Vive a camada da fama, da musica, das drogas. Até das tatuagens no rosto.

Essa, sim, inconcebível para este idoso que me tornei.

Não importa.

Pelas próximas duas horas, decido, não vou existir em minhas dimensões.

Vou flutuar nessas que não são minhas, como um observador.

No palco, Post Malone, que atrasou apenas 10 minutos, entra com uma salva de fogos de artifício e soam os primeiros acordes de um de seus clássicos.

Ainda bem. Nada de música nova.

Frank Sinatra uma vez disse que ninguém vai a um show para escutar músicas novas. “Um artista, num show, deve tocar só músicas que todo mundo conhece,” – disse the old blue eyes.

As camadas de Post Malone, mixadas às dimensões dos adolescentes, nas duas ou três primeiras músicas criam um efeito raro, que atravessa a platéia como eletricidade.

Uma alegria contagiante.

Olho em volta.

Milhares de adolescentes pulam, gritam, cantam, com os braços erguidos, copiando os gesto do cantor.

Eu não pulo, claro. Não porque não queira, mas porque faria um estrago na minha hérnia de disco. Mas é bom ver tanta energia.

Começa a chover. Não é uma chuva fina, nem uma garoa paulista. É uma tempestade de verdade. Nas dimensões que compõem minha vida, a chuva seria motivo suficiente para ir embora.

Mas não vou, contagiado pela alegria dos adolescentes e de Post Malone.

Esqueço das joias de Bolsonaro.

Esqueço dos ministros de Lula.

Esqueço dos generais corruptos para me dissolver como a chuva nessas camadas alheias.

Só agora, quando o efeito já passou, me dou conta de como essa experiência faz bem.

A pandemia, a política, a economia, o home office dominaram a rotina por tanto tempo que, talvez, a gente tenha esquecido de como a vida pode ser mais do que nossas próprias dimensões.

E quem diria que adolescentes pulando molhados de chuva me lembrariam disso.