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“Sobrevivi. Tenho 80 anos, saúde e prestígio. Sou bonitona”, diz Zezé Motta

Crédito: João Castellano/Istoé

Zezé Motta se diz emocionada com a diversidade no setor cultural: “Frutos de uma luta da qual participei desde jovem” (Crédito: João Castellano/Istoé)

Por Elba Kriss

Zezé Motta segue as oito décadas de vida com agenda de estrela. Uma trajetória que soma conquistas, superações e perseverança. A jovem artista que eternizou Xica da Silva, no longa-metragem de Cacá Diegues, driblou e ainda esquiva-se do preconceito, racismo e da discriminação, escancarados e velados. Na vida pessoal e no ofício de atriz, “arregaçou as mangas” como aprendeu com Lélia Gonzalez, fundadora do Movimento Negro Unificado. Consagrou-se na dramaturgia e no ativismo. São mais de 50 anos de carreira, com 50 projetos na televisão, 70 filmes e 14 discos. Os números seguem crescendo: atualmente brilha na novela Fuzuê e na série Histórias Impossíveis, ambas da Globo, e nos seriados Arcanjo Renegado e Fim, no Globoplay. TV paga e cinema estão na lista com mais quatro produções até o fim do ano. O lado musical vai no mesmo ritmo com o show Coração Vagabundo — Zezé Canta Caetano. O segredo da longevidade, diz ela à ISTOÉ, resume-se à “disciplina”. O suficiente para viver “de bem com a vida”. “Estou até namorando. Não estou morta”.

Recentemente, foi comemorado o protagonismo negro nas novelas da Globo — Vai na Fé, Amor Perfeito e Terra e Paixão. No SBT, a trama juvenil Romeu e Julieta também tem protagonista negro. Em São Paulo, o espetáculo O Mágico de Oz, no Teatro Procópio Ferreira, mostra uma Dorothy negra. No cinema, A Pequena Sereia, da Disney, trouxe uma Ariel preta. Qual o seu olhar para essa realidade?
Fico emocionada. É como ver os frutos de uma luta que abracei desde jovem. E continuo nela. As coisas melhoram devagarinho, mas temos muito pela frente. Já se tem essa preocupação dos produtores e diretores. Sou de um tempo no qual, em cada produção, você encontrava, no máximo, um ou dois negros em personagens subalternos.

Como o cenário artístico se reflete na sociedade?
Tem uma fatia da sociedade atenta a essa questão. Do começo da minha militância até hoje, avançou. Pessoas preocupadas com mudanças e justiça fazem esse movimento, o de virar o jogo. E vejo que é com naturalidade. Depois de tanta luta, sabia que esse momento chegaria. Sempre fui otimista.

“Fico emocionada com o protagonismo negro na televisão. Sou de um tempo no qual, em cada novela, você encontrava, no máximo, um ou dois pretos como personagens subalternos” (Crédito:Rede Globo/João Miguel Júnior)

Quando percebeu essa discrepância na oferta de trabalhos que chegavam até você?
No início da carreira, não percebia essa distribuição de papéis. Mas comecei a ver que era sempre chamada para fazer a doméstica no cinema ou televisão. Meus personagens só tinham destaque quando o tema era escravidão. A ficha caiu. Passei a denunciar nas entrevistas. Mas por questão de sobrevivência, tinha certa dificuldade de dizer “não”. Se dissesse “não” para todos, não trabalharia. Mas uma hora eu disse “chega”. Eu tinha feito Xica da Silva, que foi meu divisor de águas, e estava com a trajetória de cantora encaminhada. Recebi um roteiro de um seriado chamado Caso Especial Festa de Aniversário, de Clarice Lispector. Fui convidada para servir os doces e salgados nessa tal festa. Falei “agradecida” e chutei o balde.

Foi nesse momento que decidiu não aceitar mais papéis de empregada?
Sim. Comecei a questionar: “Por que não uma doméstica protagonista?”. Xica da Silva era escrava, mas era uma rainha.

Certa vez, você comentou que teve uma fase de embranquecimento. O que te marcou?
Tive o exemplo da minha mãe que alisava o cabelo. Ela lavava o arroz e passava essa primeira água na pele para clarear. Eu tinha a preocupação de alisar os fios e usei muito uma peruca com corte chanel. Tinha fixação em ganhar dinheiro para operar o nariz, queria afinar porque todo mundo falava que ele era chato. Tive esse processo de querer mudanças em mim, era exatamente a negação das origens. Discriminação é um crime. É cruel porque dói na alma. Te coloca num lugar como se fizesse parte de grupo inferior. E se acreditamos, é um sofrimento sem fim, uma tortura.

Hoje o mercado publicitário está totalmente aberto para você. Qual é o sentimento ao se ver como embaixadora de marcas de beleza?
Aliás, virei garota-propaganda depois de idosa. Acho ótimo. Me perguntam sobre quando me rotularam de símbolo sexual. Eu gostei. Não por megalomania ou porque fosse importante para a pessoa Zezé Motta. Ruim não é, mas foi a militante quem soltou fogos. Quando fiz o teste para Xica da Silva, concorri com outras 30 candidatas que eram atrizes, bailarinas e modelos. Fui eleita e saiu uma notinha com foto numa revista: “Quem venceu para fazer Xica foi uma atriz feia. Porém, exuberante”.

Quando você e Marcos Paulo interpretaram um casal interracial em Corpo a Corpo, na Globo, também sofreram ataques. Como viveu e superou tudo isso?
Confesso que não sofri muito porque tive a sorte de ter sido aluna de Lélia Gonzalez [filósofa e antropóloga] em um curso de Cultura Negra. Na aula inaugural, ela disse: “Sei por que estão aqui, mas gostaria de lembrar que não temos tempo para lamúrias. Precisamos arregaçar as mangas para virar esse jogo”. Levei para a vida.

O racismo de anos atrás para o de hoje mudou?
O que mudou é que ninguém admitia ser racista. Pessoas cometiam atos racistas e não percebiam. E é nesse sentido que as discussões, debates e palestras são importantes. É bom se flagrar racista. Quando fiz Corpo a Corpo, houve uma pesquisa e perguntaram às pessoas se elas eram racistas. “Claro que não”, respondiam. E interrogavam se “tudo bem se o filho casasse com uma mulher negra?”. Teve uma senhora que confessou “susto ao imaginar netos negros” e admitiu, então, que era racista. Mas nessa pesquisa, teve quem falasse: “Não acredito que Marcos Paulo precisa de dinheiro para passar pela humilhação de beijar uma negra horrorosa”. Marquinhos chegava em casa — era época da secretária eletrônica — e encontrava recados agressivos. Umas palhaçadas de mulheres como: “Eu que sou linda e você beijando aquela negra feia”. Ele desligou o aparelho de vez para não ouvir essas coisas.

Hoje temos um Ministério da Igualdade Racial, que desenvolve políticas públicas de promoção da igualdade e combate ao racismo. Como analisa esse trabalho do governo?
Como falei: essa hora tinha que chegar. Esse momento de virada entrará no currículo escolar, porque é um absurdo os grupos que construíram o Brasil serem marginalizados.

Consegue mensurar consequências na sua trajetória artística por conta do racismo?
Olha, a palavra constante na minha vida é gratidão. Sobrevivi a tudo isso. Tenho 80 anos e 55 de carreira. Uma profissão difícil de começar e mais ainda de se manter. Estou viva e com saúde. Tenho prestígio e sou bonitona. Vivo de bem com a vida. Estou até namorando. Não estou morta.

Você é reservada sobre sua vida pessoal, mas falou de um namorado anos atrás. É o mesmo de 2021?
É possível. É uma história de 30 anos, com vai e volta.

É um relacionamento, como dizem, de juntar as escovas?
Não. Aliás, isso nunca mais. Casei cinco vezes. Chega, né? O legal é que ele também não pensa em casamento. Não temos tempo para brigar, porque moro no Rio de Janeiro e São Paulo. Ele tem planos de ir para o Rio, mas ficará em um espaço só dele.

Qual é seu conselho para a juventude em busca do par perfeito?
Ficamos cada vez mais exigentes. Par perfeito não existe. Para manter uma relação, os dois têm que fazer concessões. Mas nada que te violente.

Você tem quatro filhos, como foi a maternidade diante da trajetória em ascensão?
Como trabalhava muito, sempre tive um apoio. Lembro que uma vez perguntaram para a minha mais velha, a Luciana: “É bom ser filha da Zezé Motta?”. “Se não viajasse tanto”, respondeu ela. Expliquei que a mamãe “viajava para dar o tênis” que ela pedia. No final deu tudo certo.

A carreira musical ficou adormecida?
Nunca. Na verdade, era para ter iniciado a carreira como cantora. Meu pai era músico clássico, professor de violão e tocava música popular para sobreviver.

“No início da carreira, era sempre chamada para interpretar domésticas. Houve uma hora em que eu disse ‘chega’ e chutei o balde. Xica da Silva foi uma escrava, mas uma rainha” (Crédito:Divulgação)

Você está no Instagram e no TikTok, as redes sociais são uma forma de ter contato com a nova geração?
Geralmente tem alguém do meu lado. Se falhar algum botão, apertam para mim. Outro dia, duas adolescentes me observaram no aeroporto. A mãe falou: “Deixem de ser tímidas. Zezé, elas gostam de você.” Fiquei emocionada porque eram meninas de 12 e 13 anos.

Como vê o atual streaming para o setor artístico? Você estará na série Americana, no Star+, da Disney.
Quando vi o convite para um projeto da Disney, só faltou eu me beliscar. O streaming é bom para nós atores.

Na TV paga, seu lado produtora idealizou o especial Mulheres Negras, no canal E!, para debater racismo, machismo e empoderamento. Qual é o objetivo desse produto?
É importante que seja esse o título. Algo que provoca sobre o que acontece com as mulheres negras. Um ponto que me aborrece é o tema do salário. A mulher ganha menos do que o homem. E a mulher negra ganha menos que o homem e a mulher branca. As pesquisas sobre feminicídio mostram um absurdo a respeito do número de mulheres assassinadas: a maioria é negra. Isso tem a ver não só com o social, mas com educação. É grave.

No cinema, você estará em A Carta de Esperança Garcia. Outra história necessária a ser contada para a atual geração. Quão importante foi rodar o longa?
Fiquei lisonjeada por ter sido escolhida. Esperança Garcia foi uma escrava [dos anos 1770] que se destacou por não ser analfabeta e ter escrito uma carta-denúncia de maus tratos para o governador.