Comportamento

Como o acervo do Museu Britânico foi parar em site de leilão

A polícia investiga o sumiço de dois mil objetos raros que eram protegidos por forte esquema de segurança. O larápio pode ser um ex-funcionário da instituição que anunciou tesouros de R$ 316 mil, em sites de leilão, por apenas R$ 250

Crédito: Niklas Halle'n

Museu Britânico com reputação abalada: raridades datadas do século 15 a.C ao século 19 foram levadas do acervo desde 2016 (Crédito: Niklas Halle'n)

Por Elba Kriss

Não é somente sob a guarda de autoridades brasileiras que raros e caros objetos, joias e artefatos históricos evaporam do dia para a noite. No Reino Unido, por exemplo, algo de similar acontece — mais pontualmente no Museu Britânico. Por lá, a infâmia é que cerca de duas mil peças foram surrupiadas da instituição indo parar no eBay, um popular site de leilões. No comércio eletrônico, as preciosidades de R$ 316 mil foram anunciadas por somente R$ 250.

Os gestores admitiram o sumiço de itens de ouro, pedras semipreciosas e vidros, todos datados do século 15 a.C ao século 19.

Um renomado curador foi demitido e apontado como possível larápio, mas as investigações a seu respeito ainda são iniciais. A situação vergonhosa culminou na queda de Hartwig Fischer, diretor da instituição. Ele renunciou e assumiu erros na investigação do furto da coleção.

O resumo do vexame: não há controle do catálogo de um dos museus mais visitados do mundo. Sequer há fotos de todo o patrimônio. “A responsabilidade por essas falhas cabe, em última instância, ao seu diretor”, consentiu Fischer. Pior, a gestão dele “não respondeu com rigor necessário”, pois não é de hoje que o estabelecimento é avisado dos extravios.

Hartwig Fischer, diretor da instituição: renúncia ao cargo após admitir falhas na gestão (Crédito:Divulgação)

Localizado em Londres, o Museu Britânico foi fundado em 1753 com coleção que beira oito milhões de peças. No entanto, apenas 80 mil são expostas. O resto fica guardado longe dos olhos do público, e é nesse ponto que o ladrão pode ter encontrado lacunas na segurança.

A polícia segue o raciocínio de que a área restrita tem irregularidades, sendo possível sair com pequenos objetos no bolso. Parece roteiro de filme, mas o fato é que funcionários começaram a notar a falta de alguns itens há anos.

Curiosamente, elementos similares aos que sumiram apareceram em sites de venda desde 2016. Aliás, a denúncia partiu de um especialista em antiguidades que viu um anúncio de um camafeu romano e avisou a entidade há três anos.

Foi o estopim, pois oferecida por pouco mais de R$ 200 a unidade histórica sequer foi arrematada. Nada foi feito na época, mas uma apuração interna avançou para o que se vê nos tablóides de hoje: o curador Peter Higgs, que tinha mais de 30 anos de casa, foi demitido em julho e está sendo investigado. Ele nega envolvimento com o crime, e se diz desolado por ter tido sua reputação manchada — foi visto chorando por colegas.

“O furto desses objetos é irônico. Boa parte do museu é constituída por peças que os ingleses saquearam de seus locais de origem.”
Felipe Martinez, doutor em História da Arte

Em seguida, o diretor Fischer pediu para sair. A negligência de milhões de libras foi um golpe daqueles e fica pior a cada desenrolar. A incompetência dos últimos anos resultou em perda histórica imensurável já que a polícia avalia que peças de ouro, possivelmente, foram derretidas no mercado paralelo.

A informação doeu na alma de profissionais da área, com o governo pedindo desculpas pelo embaraçoso momento.

George Osborne, presidente do conselho de administração do museu, agora corre para recuperar o que foi desviado. Segundo ele, há itens que já voltaram para o acervo. “Uma fresta de esperança”, anunciou. A administração trabalha com três prioridades: encontrar o material, descobrir quem é o responsável e aperfeiçoar a segurança.

O roubo no Museu Britânico acontece em meio a uma fervorosa discussão sobre a devolução de obras de arte para seus países de origem. A deputada Bell Ribeiro-Addy não se intimidou em evocar a lei de 1963 que impede o instituto de transferir ou vender exemplares de sua coleção, como mármores do Partenon e os bronzes do Benim. “Uma das razões insultuosas que apresentaram é que os outros países — a quem pertencem esses itens — não seriam capazes de cuidar deles ou seriam provavelmente roubados. Mas há pessoas aqui que os colocam no eBay”, disparou.

Críticas sobre a reputação em descrédito e comentários hostis de que a cultura imperialista prova do próprio veneno potencializam o debate.

“O furto desses objetos é, no mínimo, irônico. Boa parte da coleção do Museu Britânico é constituída por peças que o império britânico saqueou de seus locais de origem, especialmente durante os séculos 18 e 19”, comenta Felipe Martinez, doutor em História da Arte pela Unicamp. “Um dos argumentos apontados para não devolver esses itens é que o museu tem capacidades de preservá-los e mantê-los seguros. Não é o que esse caso mostra”, prossegue o também professor da Casa do Saber.

Para instituições de referência, o escândalo londrino traz um aprendizado: “Ajuda a pensar se ainda faz sentido exibir um acervo como aquele como se estivéssemos no período vitoriano, quando Londres era considerada o centro do mundo. Em segundo lugar, é preciso que os museus conheçam muito bem seus patrimônios. Isso passa por valorizar os profissionais de conservação, restauro, produção, educação, pesquisa e catalogação.”

Ao desembarcar no Brasil, a notícia do sumiço do ouro do museu despertou comentários nas redes sociais. Um deles dizia que ”não se tem notícia se o clã Bolsonaro passou por lá.”