Comportamento

Faustão e os transplantes de coração no Brasil: entenda a complicada realidade

A condição médica do apresentador Fausto Silva, que o faz aguardar transplante de coração, afeta cerca de 3 milhões de brasileiros e traz à tona necessidade de conscientização a respeito da doação de órgãos

Crédito: Jardiel Carvalho

O advogado Paulo Guzzo ficou quatro meses na lista de prioridade à espera de um coração: “A gratidão pela doação teve poder terapêutico e foi mais potente que qualquer sonho” (Crédito: Jardiel Carvalho)

Por Elba Kriss

“Torço para que o transplante de Faustão ocorra rápido. Ele é como eu: sou grande, tenho 1,90m e tinha 105kg. Por isso, os doadores que apareciam não eram compatíveis. Fiquei quatro meses internado na lista prioritária até chegar o coração. Meu transplante foi um milagre.” Esse é o relato do advogado Paulo Guzzo, de 59 anos, submetido à cirurgia em abril último após anos de insuficiência cardíaca (IC) com o agravante de arritmia. Com histórico de bradicardia — ritmo cardíaco lento —, um período de tensão na trajetória profissional em 2007 o levou ao distúrbio.

“O estresse ativou a arritmia maligna. Tive que colocar um marca-passo, o CDI, que é um desfibrilador interno. Foi o que salvou minha vida por 17 vezes. Deixei de morrer por 17 vezes”, narra. O dispositivo detecta a falha cardíaca e atua imediatamente por estímulos elétricos. Assim, Guzzo sabe de cor quando ele funcionou. “É um choque no coração, uma pancada imensa”, detalha.

Em 2018, recebeu a informação que temia: precisava de um transplante. “Meu coração estava fraco. Entrei no número 90 da fila”, recorda.

No início do ano, o órgão atingiu o ápice da arritmia em um momento dramático durante uma viagem ao Rio de Janeiro.

“Comecei a berrar e veio o primeiro choque, depois o segundo… tomei 14 choques simultâneos”, recorda.

Morador de São Paulo, voltou para a cidade de ambulância, direto para o hospital. Internado e sob medicação, ficou na lista prioritária por quatro meses. “Transplantei em 8 de abril, um Sábado de Aleluia. Tenho um nascimento e agora um renascimento”, comemora.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia, a insuficiência cardíaca que o acometeu afeta cerca de três milhões de brasileiros, como o apresentador Fausto Silva, 73 anos. Internado no Hospital Israelita Albert Einstein desde o início de agosto para tratar a doença que acompanhava desde 2020, teve piora e agora aguarda pelo transplante com urgência. O caso levantou dúvidas sobre a síndrome e a atuação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT).

A insuficiência cardíaca é caracterizada pela incapacidade de o coração atuar adequadamente no bombeamento de sangue, comprometendo o funcionamento do organismo.

Se não é tratada, reduz a qualidade de vida e a sobrevida. “É uma doença prevalente, com incidência de 240 mil novos casos por ano no Brasil”, enumera o cardiologista Sergio Timerman.

As causas podem ser inúmeras, mas essa é uma consequência de outras circunstâncias que afetam o órgão muscular.

“Existem situações genéticas e problemas congênitos, mas a maioria é de hipertensos de longa data, os que sofreram infarto, os que têm quadro anginoso ou o diabético malcuidado. Doenças cardiovasculares também podem levar à insuficiência cardíaca, por isso o fundamental é a prevenção primária”, diz.

Como o órgão fica incapaz de trabalhar, surgem os sintomas — falta de ar, cansaço e inchaço nas pernas —, que ainda são muito negligenciados, atrasando diagnósticos precoces.

Quando constatada, a IC pode ser controlada com alternativas como:
* medicamentos,
* marca-passo,
* mudança no estilo de vida.

“O tratamento tem de ser priorizado para manter o paciente em estágio que não precise chegar ao transplante. Temos diretrizes para manter o indivíduo por anos com qualidade de vida, com o coração suprindo as necessidades do corpo”, destaca.

Sem o rastreamento, a IC pode evoluir a níveis agudos de falta de ar em situações como escovar os dentes ou tomar banho. Assim, a ala médica alerta para que as pessoas não descuidem do check-up.

Via final da doença

Quando a insuficiência cardíaca evolui a ponto de levar à falência outros órgãos, surge a necessidade do transplante. “No momento que se exauriu toda a questão clínica e tudo que podia ser feito de intervenção, indicamos o procedimento”, explica Alexandre Soeiro, coordenador do programa de Insuficiência Cardíaca no Hcor.

No Brasil, o Sistema Nacional de Transplantes é responsável pela regulamentação, controle e monitoramento de doações e transplantes. A lista é única e reúne pacientes da rede pública e privada.

A gravidade, o tipo sanguíneo e o tamanho corporal influenciam no tempo de espera, que pode variar de 12 a 18 meses, em ocorrências menos graves, e ser de dois a três meses, nos casos mais complicados.

Segundo o Ministério da Saúde, dos 66 mil brasileiros que aguardam por transplantes, cerca de 380 esperam por um coração.

“Surgiu a pergunta: ‘Será que o Faustão vai pular?’ Não vai. Quem coordena não é o Einstein, o Hcor ou Instituto do Coração [InCor]. É uma lista nacional”, prossegue Soeiro.

A ordem respeita a data de inclusão e mudanças só acontecem pelo quadro clínico. “Quando o indivíduo interna e liga o medicamento na veia, passa a ser prioridade”, exemplifica Soeiro.

Outros aspectos também atrasam o procedimento. “Tem o fator distância, pois é preciso buscar o órgão em um lugar que dê tempo de chegar ao receptor”, diz o coordenador do Hcor.

“É um processo sério, temos regulação criteriosa. Não existe tráfico de órgãos e ninguém fura a fila.”
Alexandre Soeiro, coordenador do programa de Insuficiência Cardíaca no Hcor

Daniela Salomão, do Sistema Nacional de Transplantes: “Com autorização familiar em 100%, dobraríamos o número de procedimentos no País” (Crédito:Valter Campanato/Agência Brasil)

Recusa familiar

Um dos problemas do SNT é a desproporção entre número de pacientes na lista e o de transplantes realizados. Por isso, é importante conscientizar a população sobre o processo, já que no Brasil a legislação determina que a palavra final é da família.

“Dependemos dos doadores aptos, em idade e condições adequadas. E é preciso que, em vida, as pessoas manifestem o desejo para seus familiares”, ressalta Letícia Braga Ferreira, cardiologista da Rede Mater Dei de Saúde.

A situação narrada pela profissional é o que se vê quando há potenciais doadores — aqueles com perda da função do cerébro. Essa é a realidade que Daniela Salomão, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes, busca reverter.

“A morte encefálica é uma coisa rara de acontecer. Dos pacientes internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), é um grupo de 5%. Além disso, para que evolua para doação, esse indivíduo não pode ter doença infectocontagiosa ou ser portador de neoplasia [massa de tecido anormal]. Desse universo que já é pequeno, excluímos essas pessoas”, inicia.

“E nem todo mundo em condição de morte encefálica pode ser doador. Exemplo: hipertensão ou diabetes a vida inteira. Às vezes, coração, rim ou fígado não tem condições para captação. E ainda tem a autorização familiar, cujo volume de negativas é expressivo”, lamenta.

Segundo relatório do Ministério da Saúde, foram 23.516 transplantes em 2021, sendo 334 de coração. “Excluindo as contraindicações, se tivéssemos autorização familiar em 100% dos casos, dobraríamos o número de transplantes no País”, diz Daniela.

Nesse cenário, um dos planos do SNT diz respeito à conscientização. “Temos de levar essa discussão para as escolas, às crianças. Elas têm de sair das instituições de ensino sabendo o que é doação, o que é transplante, para quê serve e por que é necessário.”

Ela cita como inspiração a Espanha, que tem o maior número de doações do mundo e cuja recusa familiar está abaixo de 12%.

Transplantado há quatro meses, Guzzo sintetiza o ato mais generoso do ser humano: “As pessoas ainda não compreendem a força de uma doação. Ela salva, nos resgata das sutis e invisíveis aflições, porque podemos viver. E viver é tão espetacular.”

Primeiro transplante de coração no Brasil

João Boiadeiro em recuperação após receber órgão: cirurgião Euryclides Zerbini foi o quinto médico do mundo a realizar
o transplante de coração (Crédito:Divulgação)

Em 26 de maio de 1968, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, foi realizado o primeiro transplante de coração no País.

O feito se deu pelas mãos da equipe do doutor Euryclides de Jesus Zerbini, sendo também o primeiro da América Latina e ocorrendo apenas cinco meses depois do primeiro procedimento do gênero no mundo na África do Sul.

O lavrador mato-grossense João Ferreira da Cunha, apelidado de João Boiadeiro, foi quem recebeu a doação. Ele viveu 28 dias.

A morte foi causada por rejeição ao órgão, algo que o próprio Zerbini lamentou nos anos seguintes: “A manutenção do doente era difícil, porque as drogas não eram muito ativas”.

A questão não desanimou a medicina do País, que evoluiu para a realidade atual. “Tivemos avanços na técnica cirúrgica e terapia imunossupressora. Hoje temos drogas com menos efeitos colaterais e intensificamos o monitoramento dos pacientes. Fazemos biópsias de rotina no coração transplantado e vários exames para detectar possíveis complicações a longo prazo”, resume Letícia Braga Ferreira, cardiologista da Rede Mater Dei de Saúde.