Brasil

Os novos Faria Limers: mais informais, menos isolados

Avenida ganha curva de 180° — saem os tons sóbrios, discursos conservadores e via, que é símbolo do mercado financeiro paulistano, fica mais colorida e progressista

Crédito: Marco Ankosqui

Perfil alterado por diversidade, sustentabilidade, pandemia e troca de governo (Crédito: Marco Ankosqui)

Por Ana Mosquera, Luiz Cesar Pimentel e Mirela Luiz

O discurso de admiração ao trilhão de reais que Paulo Guedes, Ministro da Economia de Jair Bolsonaro, arrecadaria “de cara, só com venda de imóveis da União” (depois seria com privatizações), foi trocado por elogios à austeridade do atual dono da pasta no governo Lula, Fernando Haddad, e sua PEC da Transição e arcabouço fiscal. As camisas de cores neutras com monogramas costurados no peito foram trocadas por peças bem coloridas, assim como os cabelos ganharam muito mais tons. Tatuagens são exibidas com naturalidade, e mesmo em profissionais do mercado financeiro não é incomum encontrar alargadores de orelha. O governo mudou, a pandemia acabou e um novo Faria Limer surgiu na avenida que tornara-se sinônimo de opulência, ostentação e conservadorismo em São Paulo.

Chamada de Condado ou Vale do Silício Brasileiro, a Avenida Brigadeiro Faria Lima, na Zona Oeste da cidade, é o coração empresarial e financeiro paulistano, concentrando:
* bancos,
*corretoras de valores,
*empresas de tecnologia,
*escritórios de advocacia.

É importante recortar a Faria Lima a que nos referimos. Trata-se de trecho de 1,5 quilômetro (ver mapa abaixo), dos seus 4,6 totais de extensão, que abriga grande fatia dos mais valorizados escritórios, chamados A e A+, por metro quadrado da metrópole.

O trecho tem a segunda menor taxa de vacância da capital — 6,4%, enquanto a média de endereços do tipo e padrão é de 21,5% (a menor é a do Complexo JK, com 5,8%).

O valor do metro quadrado é também o segundo mais alto do setor empresarial da cidade, com robustos R$ 191,45, ficando a liderança com o Itaim e seus R$ 273,95.

Entretanto, o líder comporta somente quatro edifícios profissionais do quilate máximo, enquanto a Faria Lima abriga 30, sem contar uma taxa de desocupação três vezes maior no bairro que carrega o preço mais caro.

Mas a história desse polo econômico, que hoje dita regras e é capaz de derrubar ministros e pilotar a condução da vida financeira nacional, remonta ao final da década de 1960, quando foi inaugurado.

No entanto, foi a partir da década de 1990 que a região começou a se consolidar como um centro financeiro e a Faria Lima foi se transformando em algo mais “exclusive” e “personnalité”.

Com a abertura econômica do Brasil e a estabilização da moeda, a área passou a atrair a atenção de grandes empresas e instituições financeiras, que se concentravam na Avenida Paulista. A presença de bancos, corretoras e fundos de investimento na região impulsionou o desenvolvimento do mercado financeiro nacional, tornando-a importante centro de negociações e transações.

E é nesse período que se escuta pela primeira vez o nome da via como termo de referência aos grandes economistas com visão liberal, movimento que tornou o ex-ministro de Bolsonaro Paulo Guedes o queridinho do ‘alto clero’ local.

Até 1995, a Faria Lima era composta por proprietários de luxo discreto. Naquele ano, aconteceu a Operação Urbana Consorciada, em que o prefeito à época, Paulo Maluf, afrouxou regras de construção na região em troca de verbas.

A prefeitura engordou os cofres em mais de R$ 2 bilhões e o mercado imobiliário começou a competir por quem fincava mais arranha-céus por lá.

A ciclovia, a estação de metrô, o túnel Rebouças e a reforma da avenida de mesmo nome são filhos da nova-iorquização da antiga via, que tem esse nome em homenagem ao prefeito que a inaugurou em 1968 e que morreu no ano seguinte, José Vicente de Faria Lima.

Carolina Pompeu, analista de produtos: “A geração Z tem outro perfil de abordagem, de colocar limites entre trabalho e vida pessoal” (Crédito: Marco Ankosqui)

Houve frustração entre a elite econômica quando Fernando Haddad foi escolhido ministro da Fazenda. Diante das sugestões dadas por Lula a nomes mais palatáveis no mercado financeiro, como o de Pérsio Arida, que chegou a participar da equipe de transição, esperava-se um economista já com bom trânsito na Faria Lima para o posto.

Inicialmente resistentes ao nome de Fernando Haddad como ministro da Fazenda, o grosso dos Faria Limers deixou de torcer o nariz para o ex-prefeito da cidade e passou a vê-lo como um aliado no atual governo.

Mesmo entre os mais críticos ao presidente Lula, há uma boa vontade em relação ao ministro da Fazenda. Ele é considerado o único em Brasília capaz de contestar o PT em sua busca pela expansão de gastos e ainda contar com o respaldo do presidente.

Com isso, diversos empresários e banqueiros têm elogiado o trabalho de Haddad.

1) José Berenguer, presidente do Banco XP, afirmou que “as reformas estão avançando e o ministro está desempenhando um trabalho importante”.

2) Paulo Nogueira Batista Jr., economista, destacou que as agências de risco reconheceram o sucesso de Haddad no mercado financeiro em Wall Street e na mídia nacional e internacional.

3) Ricardo Lacerda, fundador e CEO do banco de investimento BR Partners, enfatizou a conduta responsável do ministro e sua sensibilidade às preocupações do mercado.

4) Já Felipe Salto, economista-chefe e sócio da Warren Renascença, afirmou que Haddad tem prevalecido na diretriz econômica do governo Lula mesmo diante de visões distintas.

Mateus Vagner, analista de operações de commodities: “É uma mescla cultural maior. Hoje, você é muito mais avaliado pelo seu desempenho” (Crédito:Marco Ankosqui)

Dress Code

No código visual, coletinhos sem manga, tênis ecológicos e patinetes formavam o combo que definia o típico Faria Limer em 2019. De lá para cá, alguns elementos se mantêm e, ainda que os veículos de duas rodas não estejam mais disponíveis para locação, é possível vê-los, aos montes, ao lado de bicicletas e patins, entre 8h e 9h da manhã, percorrendo a ciclovia que corta a famosa avenida.

Se na década de 1960 a visualidade de grupos específicos estava mais ligada ao lazer, a partir de 1980 a balança pende para o trabalho, com os yuppies norte-americanos ditando o estilo de vida dos ingressantes no mercado.

“Esses jovens urbanos profissionais ganhavam muito dinheiro em Wall Street, então existia uma ideia de símbolos como relógios, joias, restaurantes e apartamentos caros”, diz Maíra Zimmermann, historiadora de moda e professora da FAAP.

Natural que os frequentadores do Vale do Silício Brasileiro, que passam quase 12 horas por dia no trabalho, se espelhem no país vizinho. Apesar das influências externas, é sobretudo a dinâmica pautada na lógica capitalista que dita a identidade coletiva.

Para Marcelo Ribas, advisor em um escritório de advocacia, que trabalha na rua há 10 anos, a vivência transcende o trabalho. “Criou-se um polo e a gente acaba resolvendo a vida por aqui. Moradia, mercado, clube, academia, bar, restaurante. É como dizem por aí, o Condado.”

Alguns novos moradores também enxergam o bairro de maneira acolhedora. Mateus Vagner, analista de operações de commodities, mudou-se do interior para a capital há dois anos e escolheu viver em meio ao centro financeiro.

A adaptação do guarda-roupa foi inevitável e apesar de manter uma coleção de nove cores de suéter, outro clássico do Faria Limer raiz, não abriu mão do alargador e de desfilar com acessórios menos discretos, como headphones azuis.

“O novo Faria Limer não segrega mais. Ele ainda anda em grupos, mas sabe que tem que conviver.” A volta para o escritório trouxe outra cara para a avenida. “Já não te filtram pela fisionomia. Hoje, você é muito mais avaliado pelo seu desempenho.”

O head de institucional de uma corretora Fabiano Romano acompanhou as mudanças em 20 anos de avenida.

“Se vestir é a mudança mais visual que aconteceu nos últimos anos. Isso foi uma alteração drástica, mesmo dentro dos grandes bancos.”

Ele é dos que começam o dia cedo na região, fazendo exercícios no Esporte Clube Pinheiros e presenciando grandes viradas. “O beach tennis virou tão modinha que tomou as quadras de futevôlei e de futebol de areia, restando somente uma ou duas para esses esportes.”

O cenário de fim do isolamento, com maior flexibilidade entre o trabalho presencial versus home office, somado ao desembarque de novas companhias digitais na região, engrossou o caldo da diversidade entre os Faria Limers.

Empresas como a Shopee e o LinkedIn fixaram endereço na área e se uniram a gigantes como Google e Meta na caracterização de Vale do Silício Brasileiro, tomando o lugar que cabia à vizinha Vila Olímpia.

A ocupação pelas caçulas digitais é tão significativa para a mudança do perfil dos profissionais que circulam pela avenida quanto a troca de governo e o, chamemos assim, “novo lifestyle pós-pandêmico”.

Eduardo Andretto, advogado: “Nós temos uma geração mais jovem que talvez crie algum tipo de ruptura” (Crédito:Marco Ankosqui)

Em meio a tons sóbrios e os famosos coletes, pontos coloridos se destacam. A analista de produtos Carolina Pompeu faz parte da nova geração que ocupa os trechos mais movimentados da região, e foram as campanhas inclusivas e a informalidade do home office que a fizeram se sentir confortável, hoje, de cabelo colorido e roupas informais.

Além da aparência, ela lembra que outras liberdades vão renovando o perfil dos que separam mais a vida pessoal da profissional.

“A saúde mental está muito em pauta e as pessoas vêm falando mais sobre qualidade de vida.”
Carolina Pompeu, analista de produtos

O advogado Eduardo Andretto vê com bons olhos as investidas da nova geração. Adepto de meios de transporte sustentáveis, viu mudanças significativas também dentro das empresas nos últimos anos. “Você chega em bancos muito formais para reuniões e tem pessoas com piercings e tatuagens no rosto. Melhorou bem esse ponto, as pessoas estão aceitando a diversidade.”

A presença dos novos Faria Limers rejuvenesce a imagem da região, e vai da questão estética à priorização do home office. “Nós temos uma geração mais jovem que talvez crie uma ruptura, fazendo com que as empresas mudem para manter esses talentos.” Negociar os códigos também faz parte do dia a dia do centro financeiro.