Comportamento

É o fim do livro didático?

O anúncio atabalhoado do secretário da Educação paulista de descartar 10 milhões de livros para estudantes remete à agenda conservadora do bolsonarismo, vai na contramão do mundo e levanta suspeitas sobre a real intenção da digitalização do ensino público

Crédito: Istockphoto

Educação: genitora de gênios e de... contratos polêmicos (Crédito: Istockphoto)

Por Luiz Cesar Pimentel e Elba Kriss

Foi na base da canetada que o secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder, decidiu que o estado viraria a Suécia em educação a partir do primeiro dia de 2024 — que 1,4 milhão de estudantes de 5.300 escolas do estado não precisavam dos 10 milhões de livros didáticos fornecidos pelo Ministério da Educação e que todo o material, entre o 6º e 9º anos do Ensino Fundamental, seria 100% digital. Só que nem o país nórdico concorda mais com a política que protagonizou desde os anos 1990, e o empresário que ocupa a cadeira mais alta da Secretaria da Educação (Seduc) terá que explicar a decisão tanto para a sociedade civil, pedagogos, lideranças educacionais quanto para Tribunal de Contas, Assembleia Legislativa e Ministério Público, enquanto adequa justificativas e recuos.

Inquérito civil aberto pelo Ministério Público em 3 de Agosto, dois dias depois do anúncio da recusa aos livros em papel, apresenta 19 considerações sobre a tomada de decisão da Seduc, entre elas uma preponderante: “A única justificativa apresentada pelo secretário em exercício seria a de manter ‘a coerência pedagógica’ na rede estadual de ensino”. E faz o mesmo questionamento que todos os reclamantes assinalaram quando da veiculação da informação:
* “Esclareça se houve consulta aos órgãos de gestão democrática do sistema educacional”,
* “aos profissionais de educação da rede estadual”,
* e “informe se houve análise dos impactos pedagógicos e de saúde com estímulo ao uso exclusivo de tecnologia”.

Em São Paulo, feira do livro aconteceu em meio ao caos: didáticos, pedagógicos e de literatura clássica e infantojuvenil atraíram profissionais e estudantes (Crédito:Marco Ankosqui)

Sobre os dois primeiros itens apontados no inquérito, é possível responder que nem órgãos nem profissionais foram consultados. Loretana Pancera, presidente do Centro do Professorado Paulista (CPP), confirma a falta de diálogo antes do anúncio.

“A CPP, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e outras entidades não foram ouvidas”, diz.

Edgard José Fiusa, dirigente da instituição, endossa. “Como não se informaram com as bases? É preciso ouvir quem está na sala de aula, profissionais, estudiosos e acadêmicos”, avalia. “Nós, educadores, nos preocupamos com tudo em relação ao estudante. Nos preocupamos com a formação do cidadão.”

Quem está na linha de frente também gostaria de ter voz no imbróglio. Com 30 anos de magistério, a professora Maria José da Costa, de 81 anos, resume a realidade nas escolas. “O livro transforma. Além de saber usar o computador, tablet ou celular, você tem que aprender a escrever, ter o cursivo e o contato visual”, diz.

Em conversa com os estudantes, é possível ter um retorno a ser avaliado. “O online é essencial como apoio, mas nunca substituirá o papel de um livro, de uma apostila”, diz Maria Júlia Martins, 18.

Ela e Beatriz Vilas Boas, 17, concluíram o Ensino Médio no ano passado, ou seja, enfrentaram a obrigatoriedade do estudo virtual. “Tenho vários títulos em formato PDF, mas nunca me adaptei. E indo para o lado da saúde mental e física: na pandemia, minha visão piorou com as aulas online”, acrescenta Beatriz.

Renato Feder, Secretário de Educação de São Paulo: “(O material do PNLD) está raso. Tenta cobrir currículo extenso de maneira superficial” (Crédito:Flavio Florido)

Para rabiscar

A decisão de São Paulo causou alvoroço também entre editoras e autores. Entidades de livreiros divulgaram manifesto conjunto contra o propósito e apontavam indignação com a recusa à aderência ao Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), “um instrumento de garantia de pluralidade, qualidade didático-pedagógica e de transparência”.

Entre as organizações assinantes do documento estão:
* Câmara Brasileira do Livro (CBL),
* Associação Brasileira de Livros,
* Conteúdos Educacionais (Abrelivros),
* Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale).

À reportagem, a livreira Andreia Aparecida Sales, da Jefte Livros, diz que as idas e vindas acendem sinal de alerta no setor. “Recebi tudo com medo. O mercado está preocupado, pois a educação começa na leitura. E quem acaba sendo prejudicado? As crianças, as que levam o Brasil para frente.”

Andreia Aparecida Sales, da Jefte Livros, pede análise de governantes: 10 milhões de livros a menos em 2024 seria um prejuízo (Crédito:Marco Ankosqui,)

A primeira justificativa de Feder à recusa foi por considerar os exemplares do PNLD “superficiais”. Após crescente indignação, ele recuou e disse que adotará também apostilas produzidas pela secretaria porque as obras do programa “não podem receber anotações dos alunos”, já que são reutilizados por outros estudantes posteriormente.

Na “sala de aula ideal” da Seduc paulista, as lições serão ou seriam organizadas em slides projetados pelo professor aos alunos. “A aula é uma grande TV, que passa os slides em PowerPoint, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, disse o secretário em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo. A decisão, segundo a Seduc, serviria também para uniformizar o conteúdo das mais de 5 mil escolas do Estado.

O MEC embasou a defesa do seu método: “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é uma relevante política do Ministério da Educação, com mais de 85 anos de existência e com adesão de mais de 95% das redes de ensino do Brasil”.

E devolveu a crítica com luva de pelica: “A permanência no programa é voluntária. O MEC segue de portas abertas ao diálogo e à cooperação junto a estados e municípios, sempre cumprindo o papel de articulação dos entes para a construção de uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos os estudantes brasileiros”.

Escolas terão livros didáticos impressos: rede estadual conta com mais de 900 mil dispositivos, entre notebooks, desktops e tablets (Crédito:Du Amorim)

Já sobre o terceiro item apontado no inquérito do Ministério Público, os impactos pedagógicos e de saúde, há insumos suficientes para entender que não houve tal análise, ainda mais com os recuos posteriores ao lançamento da bomba de extinção dos livros em papel.

Fosse a Seduc paulista consultar a base científica, como a Sociedade Brasileira de Pediatria, saberia que a recomendação limite de contato com aparelhos celulares, tablets e computadores para crianças e adolescentes, dos 11 aos 18 anos, é entre duas e três horas por dia.

“As telas tendem a criar atenção curta e difusa, ou seja, menos focada. Elas estão no mesmo aparelho em que estão TikTok e YouTube, o que torna fácil de a criança alternar e sair do dever de casa, leitura ou de uma tarefa mesmo em sala de aula”, avalia o pediatra Daniel Becker.

Segundo ele, uma prévia disso aconteceu na pandemia da Covid-19, quando o ensino remoto tropeçou. “Vimos que o uso da tecnologia digital exclusivamente para alfabetizar foi um fracasso”, relembra.

“Esse período trouxe um agravamento da crise de saúde emocional e mental da infância, e boa parte disso é por causa das telas. Isso se expressou com inúmeros sintomas psicossomáticos, dores, cansaços, regressões de desenvolvimento, tiques, pesadelos e terrores noturnos. Manter as escolas fechadas cinco vezes mais do que os outros países foi o nosso crime contra a infância durante a pandemia.”

Conflito de interesses

O que traz desconfiança à decisão de abrir mão de R$ 200 milhões em material didático são outros três contratos firmados entre a Secretaria da Educação e empresa da qual Feder é acionista, a Multilaser – são, coincidentemente, R$ 200 milhões para fornecimento de 97 mil notebooks e aparelhos celulares.

Os acordos foram firmados pelo governo anterior, antes da posse de Feder, mas posteriores ao seu anúncio como primeiro secretário do governo Tarcísio de Freitas.

Revelados os documentos, a Seduc alega compromisso da não realização de novos contratos durante a permanência de Feder na pasta.

O Tribunal de Contas do Estado (TCE), no entanto, decidiu analisar com lupa o que foi firmado e o Ministério Público investiga conflito de interesses nos mesmos.

Feder lança em sua defesa a gestão frente à Secretaria de Educação do Paraná nos últimos quatro anos. Graduado em Administração com mestrado em Economia, utiliza as duas especializações em seus modelos de condução.

Conforme descreve em seu perfil na rede social LinkedIn, “saí da operação da Multilaser (em 2018) para me dedicar à educação pública”. Em 15 anos como CEO da corporação, após convite societário do fundador, Alexandre Ostrowiecki, se orgulha de tê-la transformado “de empresa de reciclagem de cartuchos para impressoras em grande companhia de tecnologia”.

Atualmente, ele é acionista da Dragon Gem LLC, dona de 28,1% das ações da Multilaser.

Durante a semana, a Seduc cometeu outro deslize tecnológico – instalou o aplicativo “Minha Escola SP” em celulares particulares de professores e alunos sem que esses tivessem autorizado. O programa carrega dados pessoais como notas e frequência.

A pasta disse que “a falha ocorreu durante teste da área técnica”. A mesma “falha” ocorrera no ano passado no Paraná, quando Feder ocupava igual posto de comando no estado vizinho.

O chefe de Feder, o governador Tarcísio de Freitas, saiu em defesa do seu secretário, dizendo que a chance de substituí-lo após a polêmica é nula, pois é um profissional “preparadíssimo, estudioso, entusiasmado e idealista”.

E contornou o primeiro anúncio do fim do conteúdo físico. “A gente está aperfeiçoando esse material e vamos encadernar e entregá-lo também impresso. Ou seja, se o aluno quiser estudar digitalmente, ele vai poder. Se quiser estudar o conteúdo impresso, também vai ter esta opção.”

Segundo ele, o causador de tanto barulho foi ruído de comunicação. “As coisas, às vezes, são mal comunicadas por nós mesmos”, disse Tarcísio.

O comunicado enviado como resposta aos questionamentos desta reportagem é evasivo: “A Seduc fornecerá a todos os estudantes da rede os livros didáticos impressos e alinhados ao currículo paulista”.

A professora Maria José da Costa: “Aprender a escrever, ter o cursivo e o contato visual é transformador” (Crédito:Marco Ankosqui)

Certo é que a polêmica já entrou pro rol de métodos confusos aplicados na educação brasileira e figurará em livros didáticos futuros. Pelo andar da perspectiva global, muito provavelmente em títulos impressos.

Suécia se arrepende e volta ao papel

Durante quase 30 anos a Suécia fez uma migração progressiva para substituição do modelo didático físico pelo digital. Quando chegou ao objetivo, veio a percepção de que o método não atendia ao propósito.

Tanto que para este ano o país estabeleceu investimento de 45 milhões de euros (cerca de R$ 240 milhões) na confecção e distribuição de material didático impresso.

Uma das lideranças constantes no pódio do ranking internacional de educação, o país viu seus índices caírem em curva oposta à de digitalização total do material didático oferecido aos alunos.

Nas análises e estudos que justificaram o retorno ao modelo híbrido, misturando papel e tela, quatro pontos se destacam:
* piora gradativa do desempenho dos alunos em leitura, pois o digital proporciona maior distração;
* prejuízo à saúde pelo uso excessivo de telas;
* maior dificuldade de os pais ajudarem as crianças no estudo,
* e pesquisas científicas que comprovam benefícios do exemplar físico no desenvolvimento cognitivo dos estudantes.