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Apartheid regional: entenda por que Zema deu tiro no pé ao polemizar com Norte e Nordeste

Na luta para ganhar exposição nacional e se cacifar como nome da direita na eleição presidencial de 2026, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, exterioriza todo o seu preconceito. O fracasso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que abusou dessa estratégia, leva a uma questão: até quando vamos ter de aguentar pessoas na vida pública politicamente míopes e adeptas do ódio?

Crédito: Zanone Fraissa

Romeu Zema, governador de Minas Gerais: “Se há estados que podem contribuir para este País dar certo, eu diria que são estes sete aqui (Sul/Sudeste). São estados onde, diferentemente da grande maioria, há uma proporção muito maior de pessoas trabalhando do que vivendo de auxílio emergencial” (Crédito: Zanone Fraissa)

Por Samuel Nunes, Gabriela Rölke e Felipe Machado

Entre os tantos malefícios que o ex-presidente Jair Bolsonaro deixa ao País está o acirramento da animosidade na política e o estímulo ao preconceito contra o Norte e Nordeste. A fracassada estratégia cobrou um preço alto: o ex-presidente perdeu a reeleição. De olho em 2026, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), reacendeu esse sentimento. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele defendeu que o consórcio de governadores do Sul e Sudeste (Cossud) passe a atuar não só em estratégias para fomentar a economia regional, mas também no sentido de aumentar o protagonismo político perante as demais unidades da Federação, pois responde por boa parte do PIB e cerca de 56% da população brasileira.

“Outras regiões do Brasil, com estados muito menores em termos de economia e população, se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos”, afirmou.

Insinuou ainda que o Norte e o Nordeste, “vaquinhas que produzem pouco”, são bem tratados, enquanto o Sul e Sudeste, não. “Daqui a pouco as vaquinhas que produzem muito vão começar a reclamar o mesmo tratamento”, ameaçou.

Até quando o Norte e Nordeste serão alvos de dirigentes politicamente míopes e preconceituosos? A natureza infantilóide da analogia não exime Zema da gravidade da mensagem.

Ela não é nociva apenas do ponto de vista retórico, o que já seria muito, mas contraria o próprio conceito de República Federativa que rege o País. Não é a primeira vez que o governador promove a intolerância: “Se há estados que podem contribuir para esse País dar certo, eu diria que são esses sete aqui (Sul/Sudeste). São estados onde, diferentemente da grande maioria, há uma proporção muito maior de pessoas trabalhando do que vivendo de auxílio emergencial”.

A tática não é nova e tem raízes antigas. O professor de Ciência Política da Universidade Federal do Ceará (UFC) Francisco Xavier de Holanda explica que a fala pode remeter ao comportamento colonial, comum no período da chegada dos portugueses e espanhóis às Américas e que permanece arraigado nas culturas dos países invadidos pelos europeus.

Séculos se passaram, mas o fato é que as elites brasileiras continuam mantendo o mesmo comportamento. O preconceito contra os nascidos no Norte e Nordeste vem do período da Monarquia, quando uma intensa seca, em 1877, levou milhares de pessoas do semiárido a migrarem para o Sudeste, em busca de melhores condições de vida.

A situação se repetiu no século 20, quando o movimento migratório para as grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, se intensificou, aumentando os bolsões de pobreza.

Associados às questões de racismo e xenofobia, os discursos pela separação do Brasil, em uma área mais produtiva e rica, ganharam espaço, embora escondessem os obstáculos econômicos e sociais vividos por quem está na periferia dos grandes centros.

Flávio Dino, ministro da Justiça (Crédito:Wenderson Araujo)

“É absurdo que a extrema-direita esteja fomentando divisões regionais.”
Flávio Dino, ministro da Justiça

Discurso separatista

No Centro-Sul, os pedidos de separação sempre foram comuns. Movimentos como o “Sul é o meu País”, que defende a criação de um novo estado, apenas com Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, há décadas permeiam as discussões da extrema-direita e se baseiam no fato de que essas regiões produzem mais recursos e arrecadam mais impostos, mas recebem menos retorno de investimentos da União.

Nas classes menos esclarecidas e recheadas de preconceito, essas ideias ganharam corpo, pelo menos, desde a Revolução Farroupilha, nas décadas de 1830 e 1840, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e se reproduziram em outros conflitos, como a Guerra do Contestado, já no início do século 20.

A Constituição de 1988, com ênfase na cidadania, tentou aplacar os ânimos dos separatistas. Mas o espírito voltou à tona com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência.

Logo no início do governo mostrou sua intolerância em uma conversa com o então ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni. “Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara”, disse, sobre Flávio Dino, que comandava o Maranhão à época.

Em agosto do mesmo ano, em uma live com o deputado Cláudio Cajado, na Bahia, disse que, para virar nordestino “só tá faltando crescer um pouquinho a cabeça”.

Em fevereiro de 2022, no Ceará, fez comentário semelhante sobre o sogro, Vicente de Paulo Reinaldo: “Satisfação muito grande estar aqui no meu Nordeste. A minha esposa é filha de um ‘cabra da peste’, de um ‘cabeça chata’, de um cearense”.

João Campos, prefeito de Recife (Crédito:Divulgação)

“Respeita meu Nordeste. Somos berço de mentes brilhantes” João Campos, prefeito de Recife

O comportamento condenável ganhou adeptos em todo o País. Um exemplo aconteceu em fevereiro desse ano, quando o vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, à época filiado ao Podemos, discursou na tribuna da Câmara fazendo críticas à operação que encontrou cerca de 200 trabalhadores nordestinos vivendo em situação análoga à escravidão em empresas ligadas à produção de vinhos na região.

“Agricultores, produtores [rurais], empresas agrícolas que estão nesse momento me acompanhando, eu vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima”, disse, em referência à origem dos trabalhadores, quase todos baianos.

Ainda sugeriu que os empresários passassem a contratar argentinos, pois eles seriam mais “limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário e mantêm a casa limpa”. Apesar da gravidade, ele foi absolvido no processo de cassação aberto na Casa.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente (Crédito:Mohammed Abed)

“Sem as chuvas da Amazônia, não é possível ter vida no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste.”
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente

Lição das urnas

A arquiteta e professora da USP Raquel Rolnik afirma sobre a construção do ideário da cidade de São Paulo que há a crença na existência de “uma cidade marcada positivamente pela presença europeia nas ondas migratórias predominantes do século 19 e início do século 20 e ‘invadida’ por nordestinos pobres e analfabetos na segunda metade do século passado”.

Ela lembra, no entanto, que isso não poderia estar mais distante da realidade, já que boa parte dos europeus que participaram desse processo na capital paulista chegou ao Brasil com alto índice de analfabetismo e na absoluta miséria.

No caso de Zema, a posição esconde uma informação importante. O governador parece ter esquecido as verbas que recebe pelo território “nordestino” de seu próprio estado.

O norte mineiro é beneficiado pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), autarquia recriada em 2007 para estimular a economia da região.

Foram 250 municípios mineiros contemplados com investimentos na ordem de R$ 300 milhões. “Depois da Bahia, Minas Gerais é o estado que mais tem presença na Sudene”, afirmou Danilo Cabral, superintendente da instituição.

João Azevêdo, governador da Paraíba (Crédito:Divulgação)

“A fala de Zema é um desserviço à democracia.”
João Azevêdo, governador da Paraíba

O governador, cuja popularidade digital despencou desde a sua declaração, não escolheu um bom momento.

Segundo estudo da consultoria Tendências, a região Nordeste terá o maior crescimento em 2023 no Brasil: 2,4%. Na sequência vem o Centro-Oeste, com 2,3%. Só então temos o Sul (2,2%) e o Norte (2,1%).

O Sudeste, previsto para crescer 1,7%, aparece como a única região que vai ficar abaixo da média nacional, que será de 1,9%.

Ao optar pela hostilidade contra o Norte e Nordeste, Zema mostra que cai no mesmo erro de Bolsonaro: o de não tratar o Brasil como uma República Federativa indissolúvel.