Comportamento

Brasileiros reinventam drinques clássicos com criatividade e sabores nacionais

Martini com beterraba, Negroni de café, Moscow Mule de jambu; clássicos são reinventados e acompanham evolução da coquetelaria no Brasil, respeitando bases e tradições

Crédito:  João Castellano

Misturas e técnicas tradicionais desconstruídas: Cleber Freire, bartender do Feriae (acima); Bella Giu, releitura do Bitter Giuseppe (abaixo) (Crédito: João Castellano)

Por Ana Mosquera

Batido ou mexido? Se essa era a única crise que rondava o Dry Martini do Agente 007 James Bond na década de 1950, hoje é o rompimento da tríade gim, vermute seco e azeitona verde que atrai as atenções. Tinta de lula, caldo de frango e ostra. Ou muçarela, tomate e manjericão, que formam o Martini Caprese. Essas são apenas algumas das inovações listadas no artigo “O Martini perdeu a cabeça”, da editora de gastronomia Becky Hughes para o The New York Times. A evolução da coquetelaria somada à disponibilidade de bons insumos faz do Brasil um solo fértil para a recriação de drinques centenários. Sem perder as características essenciais de sabor, textura e apresentação, bartenders brasileiros se lançam em alterações criativas que tornam a apreciação acessível a mais pessoas.

Léo Feltran

“Clássicos foram criados com o que se tinha à disposição, mas não precisamos ficar presos a isso. Devemos nos perguntar: o drinque do final do século dezenove continua saboroso hoje?”, questiona Cleber Freire, chefe de bar do Feriae, em São Paulo.

Na adaptação do Bitter Giuseppe, que originalmente leva Cynar, vermute tinto, limão siciliano e bitter de laranja, incluiu vermutes e vinhos brasileiros, comprovando que a oferta de insumos é fundamental para a criação das novas bebidas.

“O uísque que uso é de Minas Gerais, o rum, do Rio de Janeiro. Como trabalho com produtos nacionais, os clássicos já ficam com pegada brasileira.”

A referência à vinícola nacional BellaQuinta e a abreviação de Giuseppe batizaram o Bella Giu, que homenageia indiretamente a chef de cozinha Bela Gil e sua família que costuma inovar artisticamente.


Ousadia com respeito: bar com foco no drinque reinventado no País une insumos como goiaba ao gengibre (Crédito:Divulgação)

No jogo das reinvenções, drinque nacional também tem vez, e o Caju Amigo, criado por Guilhermino Ribeiro dos Santos, em 1970, vem sendo adaptado em bares pelo Brasil.

No Preto Cozinha, em São Paulo, o chefe de bar Chris Carijó transformou o clássico brasileiro a partir de técnicas diversas – criou o Caju Brother, com cachaça ao invés de vodca, compota no lugar da versão avinagrada do doce, enquanto o suco da fruta é substituído pela cajuína.

“Fica um perfil mais azedo e equilibrado. O vinagre realça o sabor, e o coquetel gaseificado diminui a sensação de álcool e corta o dulçor.”

Para ele, é necessário respeitar dosagens, saber trocar ingredientes e mudanças bruscas na estrutura e na apresentação precisam ser comunicadas. “Ou você pode quebrar uma expectativa do cliente, que talvez nem recupere.”

Não é raro que releituras se tornem clássicos, como é o caso do Dirty Martini e do Negroni Sbagliato. Por aqui, o Moscow Mule, nascido nos anos 1940 em Nova York, foi praticamente consagrado na versão do consultor de bares e mixologista Marcelo Serrano.

Inspirado na gastronomia que usa técnicas da indústria de alimentos na culinária, a molecular, escolheu a espuma de gengibre para substituir a ginger beer da receita-mãe, indisponível no Brasil quando de sua adaptação, em 2010. Treze anos depois, criações sobre sua releitura tomam restaurantes e até bares típicos pelo País.


Visionário: mixologista Marcelo Serrano se inspirou na gastronomia molecular para o Moscow Mule brasileiro (Crédito:Neuton Araújo;)

Releitura sem fim

No paulistano Mule Mule, são 17 variações sobre o drinque, sendo uma dedicada ao criador. “Do Premiado Marcelo Serrano” leva vodca, limão siciliano, Angostura e espuma de gengibre, enquanto finalizações de maracujá, chá verde, pudim e até energético compõem os coquetéis servidos na caneca de cobre.

“A base é extremamente importante para o Moscow Mule. Pode ter variações, mas sem perder a essência do gengibre, porque a história do drinque nasce com isso. Ele surgiu por conta do excedente de ginger beer de uma fábrica que precisava utilizá-lo”, fala João Warzee, sócio do Mule Mule.

Serrano vê como positiva a abertura criativa por parte dos bartenders brasileiros, aliada ao leque de insumos disponíveis e passíveis de transformações.

“Agora é o momento de pegar os clássicos e fazer criações em cima de criações, surpreendendo as pessoas, que gostam de novidade. É uma estratégia de venda também.”
Mixologista Marcelo Serrano

Só não pode perder a alma do coquetel. “Apresentação e equilíbrio nas receitas são básicos. É o A-E-I-O-U da coquetelaria”, diz.

Na Lamparina, em Belo Horizonte, o Burrin de Minas leva cachaça e limão-cravo na composição, além de refrigerante e da espuma de gengibre.

No Celeiro Arimbá, na capital paulista, o Moscow Milho conta com licor na base e suco do cereal na espuma que cobre o copo, mas a raiz típica está presente, em forma de xarope.

Caju Brother: bartender Chris Carijó privilegia acidez e menos dulçor na releitura do Preto Cozinha (Crédito:Laís Acsa)

“Do nome nasceu a receita”, brinca a chef Angelita Gonzaga, criadora do drinque e proprietária do restaurante dedicado ao alimento básico. Para provar que muitas versões cabem em um só drinque, vale a máxima do gastrônomo Brillat-Savarin, de 1825: “A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano do que a descoberta de uma estrela”.

Na coquetelaria brasileira não faltam materiais para novidades.