Comportamento

Os novos secos e molhados: o retrô e o contemporâneo no seu bairro

Inspirados em antigas mercearias, empreendimentos atuais valorizam a pequena produção, promovem a convivência e jogam luz sobre locais tradicionais em atividade

Crédito: Bernardo Silva

Alma de mercearia: fachada do negócio em Belo Horizonte (à esq.); o empreendedor Rafael Quick (à dir.) (Crédito: Bernardo Silva)

Por Ana Mosquera

Versões atualizadas de armazéns que vendiam de tudo um pouco nas décadas passadas despontam pelo País. As novas vendas apostam em produtos artesanais, como antigamente, e investem em outros atrativos, sobretudo com o artifício da comunicação, para arrebanhar também o público mais jovem. A volta às raízes e o apreço atual pela estética retrô por parte desses consumidores pode até mover a tendência que se espalha pelas grandes capitais, mas o propósito vai além. “É um casamento de uma estética com vida. Não é só olhar uma foto antiga, buscar uma referência”, diz Rafael Quick, sócio da Cervejaria Viela e idealizador do Juramento 202, em Belo Horizonte.

Localizado no bairro da Pompéia, e cercado por pelo menos mais cinco comércios originais no raio de um quilômetro, o local traz na história a cultura da mercearia.

Em algum lugar do passado, antes de ser oficina de motos e fábrica de biscoitos, a esquina que hoje abriga o requisitado estabelecimento da capital mineira foi, um dia, secos e molhados.

“Se a gente não usa como deve, esse lugar vai tentar sempre ser uma coisa que não é, porque ele guarda uma série de práticas, conhecimentos e costumes. É pragmático, apesar de apaixonado”, conta.

Filtro de barro, vitrola, prateleiras e doces em caixas de madeira e cardápio de bolinhos e conservas marcado na parede com tinta ou em placas com letras removíveis são alguns dos elementos que dificultam diferenciar novos de velhos modelos.

Com respeito à tradição, os negócios recentes se encontram inseridos no contexto atual. Se no Juramento 202 são servidas as cervejas artesanais da casa em torneiras de metal, no Prego Secos e Molhados, em São Paulo, a balança de prato é meramente figurativa, por questões logísticas.

As adaptações, por sua vez, estão mais ligadas à sobrevivência dessa cultura do que se pensa. “Uma coisa é o filho do dono olhar para a mercearia antiga e se imaginar atrás do balcão, outra é ele ir ao Juramento e ver o bar cheio”, compartilha Quick.

Pois se em Portugal essa dinâmica segue forte, assim como em alguns interiores e zonas rurais do Brasil, nas grandes capitais a associação com a rusticidade e as facilidades de fazer compras fora dos bairros foram esmorecendo o movimento. Há exceções: a Bodega de Véio, em Recife, mantém a atmosfera original de 1980, mas em espaço ampliado e com programação cultural.

Familiar: neta de leiteiro italiano, Beatrice Morbin valoriza produtos locais na nova casa em São Paulo (Crédito:Divulgação)

Passado presente

O fechamento dos comércios originais que atravessaram gerações, engolidos pela urbanização desenfreada e pela grande indústria que mudou sua rota de abastecimento para os supermercados mais centrais, fez com que o termo se perdesse junto ao hábito de frequentar os lugares de compra, mas também de prosa e convivência.

“A gente coloca esses negócios no passado, mas eles entregam contemporaneidade, que é comprar do comerciante local, do hortifruti do vizinho”, diz Quick. “Você não vai ao pub inglês e pensa ‘eles querem voltar no tempo’”, acrescenta.

Se manter mercearias tradicionais abertas é resistência, abrir um novo espaço requer um esforço de educar o consumidor. “A minha afilhada e a minha enteada, de seis e sete anos, respectivamente, falaram que vão fazer um vídeo explicando ‘isso é seco, isso é molhado’, comenta Beatrice Morbin, sócia do Prego, no bairro paulistano da Barra Funda.

“A gente está num momento de mundo em que as coisas autênticas começam a ter muito valor”, fala o mineiro. Por mais romântica que soe a retomada de saberes, adentrar nesse universo tão particular ultrapassa a questão estética.

Uma das iniciativas do pessoal do Juramento 202 é valorizar as mercearias do bairro por meio de comunicação nas mídias sociais e da articulação com parceiros.

O projeto pretende não só “levantar a bola” dos antigos secos e molhados – alguns com mais de meio século de vida –, mas fortalecer pequenos produtores e fornecedores locais, que não têm entrada no mercado convencional.

“Com a queda das mercearias, a rede inteira vai junto. Tem muito da vocação do lugar, da cultura artesanal, mas também da distribuição de renda”, fala Quick.

Próxima ao Juramento, por exemplo, há uma produção de vassouras de piaçava de mais de 40 anos, e hoje a Jurina é a variedade feita sob encomenda pela Tico Tico para o comércio vizinho. “Sair para beber no Jura e voltar com uma vassoura debaixo do braço?! Por que não?”, eles brincam no perfil das redes sociais.

“A gente quer mais fábricas de vassoura, de macarrão enrolado no papel, de prendedor de madeira. É um jogo que os pequenos também jogam”, comenta.

Agenda de shows: Bodega de Véio, em Recife, traz características originais e novidades voltadas ao presente (Crédito:Divulgação)

A ideia de comércio eclético e que prioriza fornecedores locais está impregnada em propostas desse tipo. É assim no Prego, que carrega as mesmas características da antiga leiteria do avô de Beatrice, na Zona Leste de São Paulo: comercializam um pouco de tudo.

De pano de prato a bebidas, de produtos de higiene a pães, de espelhinho a antepastos. Atender as necessidades da vizinhança, de comer, beber e conviver, está no cerne dos secos e molhados, tanto quanto o surgimento dos novos se mostra fundamental para a permanência dos originais.

“Tem muito de resistência nesses projetos, mas precisamos trazer força e atenção para eles. E tudo só tem efeito quando se consegue trazer de volta a alma da mercearia”, afirma Quick.