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Inteligência Artificial traduz língua milenar

Ferramenta de IA ajuda a decifrar os complexos caracteres da Mesopotâmia, mais antigos que os hieróglifos egípcios

Crédito: Divulgação

Iraque: escrita cuneiforme em pedra, do período 3500-2000 a.C., em peça encontrada em um templo sumério, povo que cunhou os primeiros códigos de leis (Crédito: Divulgação)

Por Denise Mirás

Como se vivia na Mesopotâmia há cinco mil anos? Registros daquelas populações, em caracteres cuneiformes cinzelados em pedra — e pelo menos um milênio mais antigos que os hieróglifos egípcios — tiveram seu processo de tradução para o inglês por Inteligência Artificial divulgado em artigo na revista PNAS nexus, da Oxford University Press.

O resultado do trabalho de arqueólogos e especialistas em algoritmos foi considerado “satisfatório” por Gay Gurthez e Shai Gordin, de Israel, os líderes da equipe.

Como já era esperado, a precisão é maior nas sentenças curtas, como em trechos de decretos reais ou presságios religiosos na língua acádia, falada por assírios e babilônios.

Já o conteúdo mais “literário” leva a IA a “alucinações”, termo empregado para resultados quebrados ou fora do contexto da chamada língua de entrada (aquela a ser traduzida). No entanto, os cientistas esperam que o aprimoramento da ferramenta possa servir a vários campos, à medida que se aumente o número de textos traduzidos.

Ao longo dos séculos, o acadiano substituiu o sumério, de 3000 a.C. até 100 d.C., entre populações que habitavam a região dos atuais Iraque e Síria.

São pouquíssimos os especialistas nesses povos antigos, e não dão conta das descobertas crescentes dos tabletes de argila grafados, ou seus pedaços, retirados de escavações.

Como seus caracteres cuneiformes podem ter várias funções simultâneas, para sons ou ideias, por exemplo, sua tradução é complexa. O modelo do algoritmo da IA foi programado para transliterar o conteúdo para o alfabeto latino e depois para o inglês — ou passar direto para o inglês.

Aleksandar Jovanovic, lingüista, tradutor e professor da USP, lembra que a Inteligência Artificial apresenta vantagens e muitas desvantagens, já previstas pelo escritor tcheco Karel Capek há exatos 100 anos.

Em seu livro A Fábrica de Robôs, as máquinas venciam a guerra contra os humanos. Entre as desvantagens, ele cita os perigos de trechos “sem pé nem cabeça”. “

“A ferramenta não consegue trabalhar a partir de contextos históricos, econômicos e sociais, o que pode levar a erros gravíssimos nas traduções.”
Aleksandar Jovanovic, professor da USP

No caso da IA passar a escrita cuneiforme para o inglês, o professor, também especialista em semiótica (estudo do processo de interpretação dos signos), observa que dados contábeis, por exemplo, que talvez estejam registrados nos tabletes.

Podem ser mais “fáceis”, ao contrário de algo mais literário, onde muitas vezes o tradutor até se vale de neologismos, o que a IA não faz, para contextualizar a passagem da língua “de saída” para a “de chegada”.

Para se ter ideia, lembra Jovanovic, o professor Edoardo Bizarri levou duas décadas para adaptar a obra de Guimarães Rosa para o italiano.

“Traduzir palavra por palavra não faz sentido. É preciso responsabilidade para se traduzir um texto. Precisamos perguntar o que se entende por ‘satisfatório’, como foi classificada a tradução da língua acádia para o inglês feita pela Inteligência Artificial.”

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