Internacional

Um país entre dois mundos

Erdogan disputou a presidência da Turquia para seguir com seus 20 anos de autoritarismo, enquanto Kilicdaroglu reunia a oposição pela democracia à ‘europeia’

Crédito: EMRAH YORULMAZ

ÀS RUAS Eleitores de Erdogan foram a comício que reuniu 1,7 milhão de pessoas no domingo, 7 (Crédito: EMRAH YORULMAZ)

Se o país já é visto historicamente como uma ponte entre o mundo oriental e o ocidental, as eleições presidenciais na Turquia só poderiam assumir um caráter político e econômico altamente estratégico para a Europa. Internamente, a população se dividiu entre Recep Tayyip Erdogan, há 20 anos no poder (a partir de 2003 como primeiro-ministro e depois de 2014 como presidente), e seu principal adversário, Kemal Kilicdaroglu, à frente de uma coligação que liderava pesquisas, ainda que de forma apertada, até a véspera das eleições deste domingo, 14. Externamente, este pleito está sendo aguardado como um dos mais importantes do ano na Europa, por envolver questões bastante complexas, que vão de nacionalismo à xenofobia; de país alijado da União Europeia a, paradoxalmente, membro da OTAN, com o segundo maior exército dessa aliança militar. Além disso, a Turquia já se ofereceu como mediadora na guerra na Ucrânia e foi bem-sucedida na abertura de canais comerciais no Mar Negro para o escoamento de grãos ucranianos para o mundo, em meio aos bombardeios russos na região.

INFLAÇÃO A 85% A Turquia desenvolveu infratestrutura e tecnologia, mas padece com o custo de vida (Crédito:BURAK KARA)

E se a Turquia se mostra como uma conexão entre dois mundos, de culturas e religiões diferentes, e muitas vezes opostas, também se apresenta com uma imagem ambígua, encarnada por Erdogan que pende para um ou outro lado de acordo com circunstâncias. Heitor Loureiro, doutor em História e pesquisador associado ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio (Gepom), observa: “A Turquia joga em dois tabuleiros. E seus governantes têm muita habilidade para isso desde o Império Otomano, no século XIX. Já foi adversária da Rússia, mas dá as mãos a ela para reagir contra interferências dos EUA na região. Ao mesmo tempo, é membro da OTAN, liderada pelos americanos”. Internamente, Erdogan é exemplo de oscilação: mudou a postura mais liberal e democrata para a autoritária, conservadora e religiosa.

Kilicdaroglu também precisa dessa capacidade de “conciliação”, como ele denomina, para aglutinar as várias correntes políticas, étnicas e religiosas do histórico partido que preside. Faz valer seu apelido de “Gandhi turco” não apenas pela semelhança física ao líder indiano, mas pela calma aparente, para transformar a imagem de partido elitizado em algo mais social-democrata.

Com um PIB acima de US$ 900 bilhões e como a 19ª maior economia do mundo, a Turquia tem nada menos que 95 milhões de habitantes e ainda conta com a vantagem da juventude, como mão-de-obra pronta para acelerar o crescimento do país (ao contrário da Europa, em geral mais envelhecida e que ao mesmo tempo teme essa massa populacional de um vizinho islâmico). O que ocorre, no momento, como problema mais imediato a ser resolvido, é a inflação, que em 2022 foi de 85% ao ano.

Três temas centrais

Assim, encerradas as eleições na Turquia, seus governantes precisam se atentar a três grandes questões, na visão do professor Heitor Loureiro. “Será preciso reconstruir a infraestrutura das áreas afetadas pelo terremoto de fevereiro e recompor a economia. Erdogan foi criticado por demorar a colocar o Exército no resgate às vítimas, o que se refletiu nas pesquisas”, diz. O historiador observa que o discurso político dele é voltado para as camadas mais pobres, que justamente são das regiões mais atingidas pela catástrofe. “Depois, tem a inflação que chegou a níveis absurdos em 24 meses e atingiu principalmente a base de apoio do populismo, já que a população precisa recuperar seu poder de compra.”

O terceiro grande tema a ser enfrentado, segundo o professor, são os cerca de cinco milhões de sírios refugiados. “A Turquia é o país que mais recebeu refugiados no mundo, com um trabalho muito importante”, afirma. E, por anos tentando entrar na União Europeia, segue fora porque, com fronteiras derrubadas, o bloco teme que ocorra uma corrida desses refugiados para os demais países do continente. Como a Turquia não consegue mais arcar com essa despesa, Heitor Loureiro diz que todos os partidos estão de acordo quanto à necessidade de elaborar um plano de retorno dos refugiados à Síria — que aparentemente encerra sua guerra de dez anos. Com relação à guerra na Ucrânia, conflitos com os curdos ou mesmo disputas com a Grécia, o professor não acredita que haverá mudanças significativas, com a Turquia seguindo “com um pé em cada canoa”: Oriente e OTAN.

Na última pesquisa da campanha, Erdogan, 69 anos, tinha 45% dos votos contra 50% de Kilicdaroglu, 74. Bem à frente de Muharrem Ince, 59, dissidente da oposição com 3%, e Sinan Ogan, 55, extremista de direita, com 2%. Como é preciso maioria absoluta (mais de 50% dos votos), os turcos acreditavam em um segundo turno, a ser realizado no dia 28. Nesse caso, as pesquisas apontavam a vitória de Kilicdaroglu com 51%.

A expectativa pela eleição presidencial se estendeu ao Parlamento — com candidatos de 24 partidos e mais 151 independentes na corrida pelas 600 cadeiras ­—, até então de maioria pró Erdogan e que, pelo programa de Kilicdaroglu, deixaria de ser coadjuvante do Executivo, por um governo mais convergente e democrático.

ELEIÇÃO APERTADA Erdogan, o autoritário, e o rival Kilicdaroglu, chamado de ‘Ghandi turco’ (Crédito:FERDI UZUN;OMER URER)

Recuperado do mal-estar na tevê, em abril, Ergodan apostou todas as fichas na semana que antecedeu as eleições. Anunciou o avião de combate KAAN de quinta geração, o caça não-tripulado Red Apple, os drones que se tornarão o “ponto de virada” das guerras, a “grande descoberta” de gás no Mar Negro e o “enorme” campo de petróleo na fronteira com a Síria, com o lançamento de um vale-gás, mais aposentadoria a qualquer idade, para mulher ou homem que tenha cumprido 20 e 25 anos “de carteira assinada” (dois milhões de pessoas serão beneficiadas de imediato). O comício que reuniu 1,7 milhão de pessoas no domingo, 7, poderia ter sido uma cartada favorável a Erdogan.