O homem que não sabia de nada

Crédito: Douglas Magno

Carlos José Marques: Bolsonaro, um verdadeiro tornado de destruição sistêmica (Crédito: Douglas Magno)

Por Carlos José Marques

Atenção! Bolsonaro não sabe de nada! Nem imagina porque raios do céu algumas pessoas resolveram arquitetar um golpe de Estado malfadado em seu nome. Nunca quis isso. Jamais imaginou colocar as urnas eleitorais sob suspeição. Nem atacou ministros do Supremo, a democracia, a Carta Magna ou o que valha. Em tempo algum fez algo sequer parecido. Não é do seu feitio. Imagine! Que calúnia! O “mito” Messias dos trópicos foi engendrado nesse festim diabólico. Caiu na armadilha.

Tramaram à sua revelia. Comprometeram sua sacrossanta pessoa injustamente e lhe deram papel de protagonista, mesmo a contragosto. Que maldade! Foi quase obrigado a apoiar milícias de fiéis que montaram guarida – de maneira inocente, diga-se de passagem – lá na frente dos quartéis da Capital Federal, a título de, convenhamos, um passeio no parque, levados pela melhor e mais pueril das intenções.

Não, mil vezes não, o mandatário que louvava o torturador Carlos Brilhante Ustra – esse chefão dos porões sombrios da ditadura, antro de violência do DOI-CODI – não tinha ciência de que iriam falsificar a sua carteira de vacinação para que entrasse livre e serelepe na Disney.

Em hipótese alguma supôs autorizar a distribuição de lingotes de ouro a pastores aliados ou ouviu diretamente de um correligionário que, nas suas barbas, dentro do próprio governo, estavam superfaturando o preço das vacinas, numa transação tão safada como abjeta que pagaria quase três vezes a mais o valor real do imunizante. Imagine então comprar apartamentos em dinheiro vivo para somá-los a um patrimônio familiar que supera as 300 unidades? Pura falácia! Intriga da oposição.

Quem diria! Ele, o Bolsonaro impoluto, não desejava mesmo que o seu ajudante de ordens (como o próprio nome diz, seguindo as ordens do superior, quem? Quem?), Mauro Cid, resgatasse a qualquer custo as joias milionárias ganhas de um sheik árabe, contrabandeadas como muamba em embrulhos de encarregados oficiais, logo presas na Receita Federal. Foi de um clone de Bolsonaro que partiu a determinação. Não dele. Não o traiam com falso testemunho! O pobre coitado do então presidente nada fez, nem conhecia as tais joias! Nutria interesse zero por elas.

Nunca também endossou movimentos do seu ministro da Justiça, Anderson Torres, para que, deliberadamente, barrasse o livre circular de eleitores nos rincões do Norte/Nordeste, simpatizantes do opositor demiurgo Lula, em dia de votação. Muito menos pediu a Torres que liberasse os chefes da Polícia brasiliense, lhe dessem folga e deixasse a segurança do coração do Poder às moscas no infame 8 de Janeiro da balbúrdia geral.

Ou elaborasse, milimetricamente, um plano documentado em papel para o dia do juízo final que sagraria a autocracia plenipotenciária desse Messias “mito” como algo “ad aeternum”. Que crueldade fizeram com o capitão! Como foram dar com a língua nos dentes dessa forma, gente? Marcos do Val, que esteve pessoalmente ao seu lado no gabinete do Planalto, falou da estratégia de deposição do magistrado do STF Alexandre de Moraes e depois se disse coagido por Bolsonaro a gravar opositores em situações comprometedoras, extrapolando qualquer limite constitucional, que “responda pelos atos dele”. Culpa, exclusivamente, do próprio.

De mais ninguém. O mesmo se aplica à justiceira Carla Zambelli, que saiu de arma em punho nas ruas, ameaçando quem torcia pela derrota do vestal puritano Bolsonaro. Ao blogueiro extremista, chapa de todas as horas, parlamentar da bancada do grito, preso, Daniel Silveira, um emissário das fake news providenciais, a mesma responsabilidade isolada. Sem comparsas ou orientações “lá de cima”. No bom e claro português, vale para qualquer um dos asseclas: se virem com os problemas que criaram! Fizeram por livre arbítrio e espontânea vontade. Saibam: o idolatrado mito de araque será sempre capaz de jogar qualquer um dos seus aos leões para salvar a própria pele.

Atenção: qualquer um! QUALQUER UM! Comportamento previsível, metodicamente repetido. Só ele, naquela corriola de malfeitores que o cercavam, presta. Nada fez, de nada é culpado. Como disse em uma das inolvidáveis entrevistas, para quem quisesse ouvir: “é tudo para me esculachar”. Decerto! Chamaram-no (nossas sinceras condolências ao inocente útil) para nada menos que quatro oitivas até aqui.

Buscaram dele um depoimento minimamente crível, que não veio. Pura perseguição, está evidente. Nada além disso. A versão do próprio mártir imolado seria capaz de levar ouvintes adeptos, interlocutores lambe-botas a debulharem lágrimas. O Bolsonaro das quatro quedas na Justiça (por enquanto! Ainda vem mais), da peregrinação santa, sacrificante mesmo, paixão extenuante de um quase cristo, ungido, a encenar a própria sina bíblica pelos tribunais, avaliou candidamente: “fizeram algo programado para me constranger”.

Dá dó, realmente! Quem não se condói ante tamanha angústia? Quem pode imaginar a sofreguidão d’alma do pobre senhor Bolsonaro, nas madrugadas insones e solitárias, tendo de escolher, tal qual um centurião romano, entre ducados e condados dominados pelo inimigo, qual legião de soldados sacrificar para evitar a própria degola? Fugir do destino infame de ser pego com a mão na botija e apodrecer atrás das grades?

É possível se chegar aos píncaros do desespero e da piedade ao vislumbrar tão dantesca cena. Ninguém merece. Qualquer um lastimaria: por que fizeram isso? Sem razão alguma o acossaram. Açoitaram seu ego, a reputação construída, a biografia de puro esplendor. Nada restará! Talvez seja possível aventar, no campo das possibilidades eventuais – apenas ali, e mesmo assim entre os crentes mais fervorosos dessa lunática seita bolsonarista –, TALVEZ, enfatizaria novamente, no mundo idílico de uma Pollyanna, personagem que em tudo acreditava, criada pela escritora norte-americana Eleanor H. Porter, no best-seller homônimo, seja possível abraçar e ser convencido por narrativa tão rocambolesca, que esculpe um falso virtuoso, imaculado perseguido.

Mas é de bom tom, aconselhável, deixar de lado o sonho encantado que move esse senhor como uma Alice no País das Maravilhas, dotado de versões mirabolantes. Provavelmente para ele existe o chapeleiro louco ou o coelho apressado do “chá de desaniversário”, tal qual em fábulas de livros.

Mas no mundo concreto, real, dos fatos, colocando de vez os pingos nos “is”, foi o próprio Bolsonaro – todos sabem desde sempre, dadas as abundantes evidências, em atos e palavras – quem esteve por trás do vendaval de barbaridades às quais foi submetido o País. Verdadeiro tornado de destruição sistêmica.

É de um desassombro sem tamanho que um personagem como esse, depois de tudo que armou, do plantel de crimes, das inúmeras demonstrações de afronta ao Brasil – inclusive convocando embaixadores de nações amigas para desacreditar o sistema institucional em audiência pública, gravada e vista por milhões de pessoas, aqui e no mundo –, tenha a pachorra, a desfaçatez repetidamente, de vir a público para negar, com a cara mais lavada do planeta, o que fez. Embora já inelegível, ele reitera não ter qualquer participação na pilantragem orgânica arquitetada visando a beneficiá-lo diretamente. Seus mal velados intentos de virar um soberano, controlador de tudo e de todos, foram expostos à céu aberto.

Por ele mesmo. Em quatro intermináveis anos de gestão caótica, na qual se mostrou capaz de debochar até de enfermos moribundos da covid no leito de morte. Bolsonaro, para efeito de punições exemplares e implacáveis (merecidas, com certeza), é o artífice de uma tragédia anunciada, pela qual ainda estamos pagando alto preço, e não pode vir a escapar – com a alegação pueril de que era um homem que não sabia de nada – porque assim consagrará a impunidade como princípio basilar de uma sociedade que, em suas mãos, esteve à beira de perder a liberdade e o fundamento insofismável da democracia, tão arduamente conquistada.