Marcelo Drummond

Entrevista

Marcelo Drummond, ator e diretor do Teatro Oficina Uzyna Uzona

“O Zé Celso é gênio porque ele inventou um teatro”

Joao Castellano

“O Zé Celso é gênio porque ele inventou um teatro”

Editora Três
Edição 21/07/2023 - nº 2790

Por Ana Mosquera

“Eu nunca fui dirigido por outra pessoa que não fosse o Zé”, conta o carioca Marcelo Drummond, 60, ator e diretor do Teatro Oficina Uzyna Uzona há 37 anos. Foi pelo mesmo período em que ele e José Celso Martinez Corrêa, um dos principais criadores do teatro brasileiro, dividiram a vida.

A trajetória desse amor se funde a do projeto fundado em 1958 no bairro do Bixiga, em São Paulo. Foi ali, e por diversos países do mundo, que Drummond dirigiu montagens como O Bailado do Deus Morto, de Flávio de Carvalho, e Navalha na Carne, de Plínio Marcos, e onde encarnou de Oswald de Andrade ao deus Dionísio.

Também foi no centro do espaço projetado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, e considerado o mais bonito do mundo pelo The Guardian, que o casal celebrou a união em 6 de junho. Um mês depois, o corpo de Zé Celso, aos 86 anos, era velado no mesmo local, após sua morte em decorrência de um incêndio no apartamento em que viviam no bairro do Paraíso.

Após sobreviver ao incêndio, mas ainda vivendo o luto, Drummond segue com o apoio de amigos e artistas para manter em movimento um legado. A construção do Parque do Rio Bixiga, a montagem de “A Queda do Céu” e a perpetuação de um teatro público brasileiro estão em perspectiva.

Seu encontro com o Zé Celso é uma história de amor, mas também da sua trajetória. Há 37 anos, você tinha ideia de onde tudo isso te levaria?
Acho que eu tinha ideia sim. Eu gostava muito dos artistas que apresentavam trabalhos, como Caetano, Gil, que não dependiam de uma mídia, da TV, e que era uma coisa maior. Quando cheguei aqui, fiquei até meio pirado, receoso, eu tinha 20 e poucos anos, mas eu tive noção de que era um movimento grande, um legado para o mundo. E depois me confirmaram. Uma vez, estive na Argentina com um editor de política do Clarín e falamos da dificuldade que a gente tinha por causa da luta com o Grupo Sílvio Santos. E então ele falou ‘o Sílvio Santos é uma coisa do Brasil, o Oficina é de interesse mundial.’

”Há um legado do Zé, que as pessoas que aprenderam com ele e o conheceram profundamente vão levar adiante” (Crédito:Joao Castellano)

E qual a importância da construção do Parque do Rio Bixiga no terreno do Grupo Sílvio Santos?
É enorme, e é uma luta de todos os lados. Querem construir torres aqui. Com tanto prédio fechado no Centro de São Paulo, vai fazer torre para quê? Por especulação imobiliária. E é um terreno que não dá para fazer torre, porque passa um rio embaixo, que nós queremos recuperar.

Tem pessoas que só querem ver mais um shopping, que não pensam que faltam parques na cidade e que uma área livre vai valorizar a região. O Bixiga é um bairro que sempre foi destinado à cultura, por ser central. É um bairro, mas fica no Centro. É como a Lapa, no Rio. Só que os lugares foram diminuindo, fechando ou deixando o bairro, porque quem consome não queria mais vir ao Centro.

E em todo o mundo o centro é valorizado culturalmente. Museus, teatros, cinemas e parques são coisas que revitalizam o centro, porque as pessoas passam a frequentar esse lugar na hora do lazer também. É mais do que hora de sacarem isso do Bixiga.

Como você definiria esse teatro de “interesse mundial”?
É indefinível. Não só porque é o terceiro teatro construído, mas porque as coisas são mutantes. As companhias se transformam, pessoas entram e saem, os antigos voltam. Não é cartesiano, uma linha reta, é muito mais complexo. Como a Lina Bo Bardi falava, ‘o tempo não é linear, o tempo linear é uma invenção do Ocidente.’ O tempo é um emaranhado de coisas que acontecem e o Oficina está sempre de acordo com esse tempo. Agora vem um tempo diferente, óbvio, porque tudo era mais voltado para o trabalho do Zé. A gente não sabe exatamente como vai ser, mas tenho ideia. O Zé Celso é gênio porque ele inventou um teatro. Eu posso não ser o gênio que ele foi, porque eu não inventei um teatro, mas eu sei fazer o teatro que ele inventou. Eu aprendi com ele.

Como fica a montagem baseada em “A Queda do Céu”, de Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami?
Foi muito chato que as pessoas começaram a escrever de que “seria” a peça mais incrível do Oficina. Não, ela vai ser. Há um legado do Zé, que as pessoas que aprenderam com ele e o conheceram profundamente, como eu, em 37 anos, vão levar adiante. Não tem sentido não fazer “A Queda do Céu” e “Senhora dos Afogados”, do Nelson Rodrigues. Essa ele queria fazer para mim, porque sabe que eu gosto e o personagem se chama Drummond. Eu vou pegar o projeto do Kopenawa com afinco e vou trabalhar junto na produção e na direção. Essas peças vão ser feitas.

Além dos elementos que sempre estiveram presentes e da adaptação de “A Queda do Céu”, a aprovação do Marco Temporal na Câmara desencadeou uma diverticulite no Zé. A questão indígena era muito cara a ele, certo?
O Zé sempre falava da avó, que era indígena. Ele tinha aquele olho puxado, mas, se vocês virem a irmã do Zé, ela é uma indígena. Ele levava isso para a vida e, quando o Kopenawa deu os direitos a ele, ele já começou a fazer. Agora é o momento dos povos originários! Eles estão mostrando para o mundo inteiro quem são, sua importância e como sua cultura vem sendo massacrada há 500 anos.

Mas eu não tenho um olhar romântico sobre as coisas, acho que elas têm que ser construídas. Para poder fazer essa peça, eu preciso aprender com eles. Não estou acima de ninguém para proteger nenhuma cultura. Eu tenho que aprendê-la para que ela continue existindo por todas as vias e que possa, de fato, ser respeitada. Estou falando de um respeito profundo, não de máscaras de respeito que a sociedade coloca.

No caso de um projeto desses, isso se amplia, porque a gente vai trabalhar com pessoas que são, de certa forma, excluídas, que sofrem com a demarcação, o garimpo, as doenças. E o poder público não olhou para isso, ao contrário, estimulou nos anos Bolsonaro.

De que modo o Oficina atravessou os anos Bolsonaro?
Nos anos Bolsonaro o público chegou muito perto. Ele viu a necessidade de estar aqui e se mobilizou muito para que as coisas continuassem. Estávamos com um peso destruidor em cima de nós, as opiniões sobre Lei Rouanet. Porque todo mundo acha muito bom ter incentivo para comprar carro, mas reclama do incentivo para fazer teatro! Que cabeça é essa? Um economista pode muito bem entender o que é uma lei de incentivo à cultura. Muitas vezes, é um cara que viaja para a Europa e, lá, vai ver teatro. Por que não vê teatro aqui? Sendo que uma peça pode curar doenças sociais. Na Grécia, havia um hospital ao lado do Teatro de Epidauro. Hoje é tudo isolado. Estamos em uma época em que teatro é entretenimento, que se deixou de lado essa função de cura da sociedade.

“Um editor do Clarín me falou: ‘o Sílvio Santos é uma coisa do Brasil, mas o Oficina é de interesse mundial’” (Crédito:Divulgação)

Esse “espaço de cura” é muito plural, nos corpos, nas tecnologias e nas manifestações artísticas. Quais os desafios de colocar tudo isso em ação?
Os desafios são “as muitas coisas”, mas tem muitas equipes. O vídeo acontece, por exemplo, mas tem uma equipe competente por trás. Inclusive o projeto do teatro já pressupunha vídeo, porque tem pontos cegos em determinados lugares. Faz parte da ideia de aproximar a ação do público, além de que a gente consegue ver melhor por meio dele, por sermos uma geração da televisão.

O teatro faz parte da vida cotidiana, que é midiática. Com a internet, transmitimos ao vivo, na pandemia, fizemos lives. Para você ver como a ideia do “terreiro eletrônico” que o Zé tinha nos anos 1980 estava à frente do seu tempo. E a comunicação é sempre personagem por aqui. Na Grécia, inclusive, esse trabalho era do teatro, que educava o público, havia festivais para 15 mil pessoas. Com a tecnologia, aparece o teatro de revista, que trazia os principais assuntos cotidianos. O teatro é a origem da mídia e ele incorpora todas as outras, como o jornalismo.

O Zé dizia que o teatro tinha que ser público. O que isso quer dizer?
O Zé não fazia teatro por ego, ele fazia pelo trabalho. E o trabalho dele era para o público. Teatro é para o grande público. Essa diminuição que houve, das salas ficando pequenas, para 60 pessoas, o Zé não compartilhava disso. Mesmo a gente tendo muitas casas vazias, a tentativa sempre foi expandir e chegar a mais pessoas. Muita gente que estava começando no teatro queria trabalhar com o Zé.

Depois as pessoas até tentavam fugir um pouco, para entrar em outro mercado, em que o Oficina é rejeitado. A gente trabalha devagar, é um pouco artesanal. Já a grande mídia é uma coisa de indústria. O Oficina não entrou na Globo, ela não conseguiu “comer” o Oficina.

Ele ainda dizia que o Oficina é um “terreiro eletrônico sem igreja”. Como a religiosidade entra em ação nesse teatro?
O teatro une o sagrado e profano, os faz contracenar. É que toda a cabeça do mundo ocidental Cristã encurtou a religiosidade, que ficou dividida em várias. O islamismo, o cristianismo, o judaísmo. E hoje em dia há a fé no dinheiro. O deus é o dinheiro. Muitos chamam de Jesus, mas eles querem dinheiro. Já o teatro coloca na mesma “religião” uma pessoa que é judia, o ateu, o candomblecista, o umbandista.

O teatro se assemelha muito às religiões de incorporação, só que a gente atinge esse estado de outras formas, busca outros métodos. O teatro é mediunidade também, é fazer perceber o invisível. O Oswald de Andrade falava e o Zé repetia, ‘todas as religiões, nenhuma igreja e muita feitiçaria’. Pois o teatro lida com o mistério, é uma bruxaria que a gente faz para mexer na energia das pessoas. O teatro não existe dentro da gente, o que faz o teatro está entre nós. Ele sai da gente, como a voz, que não tem corpo, mas tem. O teatro já é uma atividade religiosa, no sentido de religar.

Sabemos que muitas pessoas reduzem o Oficina à nudez. Por que as questões do corpo ainda incomodam tanto?
A gente tinha muito mais liberdade quanto a isso nos anos 1980. As coisas regrediram muito, e muito por causa das igrejas pentecostais, que tentam impor uma moral que, inclusive, deu no Bolsonaro. Não sou contra as igrejas. O pastor Henrique [Vieira], por exemplo, eu acho maravilhoso, mas ele é um cara que entende tudo e respeita. Mas não dá para respeitar um [Silas] Malafaia, que não consegue respeitar um mundo que não é o dele.

Ele é um servo de dinheiro. Mas nos anos 1980, 1990, houve esse lado de “segurar” a cabeça das pessoas, porque se estava indo para algo muito libertário. Agora, quem fala que aqui tem muita gente pelada é porque tem problema com o próprio corpo. Tem que procurar um psicanalista e resolver isso. Acho que quem tem esse tipo de problema são os mesmos que ficam preocupados com a vida dos outros.

Eu mesmo recebi cartas dizendo ‘Deus está castigando, porque vocês casaram…’ Até entreguei uma para um amigo meu, o Beto, da Casa Florescer, e disse ‘você deve receber isso aqui milhares de vezes, responde aí para mim’. E ele falou ‘deixa para lá’. Qual é o problema se eu me casei com um homem?