A Kombi da Elis
Por Mentor Neto
Numa entrevista para Roberto Menescal, em 1968, Elis Regina afirmou:
“Não tem essa de público, rapaz. A gente é que faz o público.”
Elis acreditava que seu repertório, seu comportamento, sua obra é o que definiam quem seria sua audiência e não a mídia, os programas de TV ou as rádios.
Sinal dos tempos.
Passados, 32 anos de sua morte, Elis se surpreenderia por não ter mais direito a escolher seu público.
Nem ela, nem morto nenhum.
Numa recente propaganda de TV, Elis Regina aparece pilotando uma Kombi, cantando uma de suas mais famosas canções em dueto com a filha, a cantora Maria Rita, que dirige um modelo mais moderno do mesmo veículo.
Enquanto muita gente se emocionou com o filme, uma parcela da audiência sentiu-se ultrajada.
Era de se esperar.
Se tem amizade que acaba por um WhatsApp mal interpretado, quem arriscaria prever a ira que um filme como esse pode causar.
Em tempos de deep fake, como definir os limites da ética?
As reações mais exaltadas questionam a ousadia de uma montadora que, dizem eles, colaborou com o governo militar, ao usar uma cantora que lutou contra a ditadura, num comercialzinho de TV.
Além disso, alegam que a música foi um dos hinos da resistência ao governo militar.
Claro que os exageros argumentativos são evidentes.
Afinal, não existe nenhuma prova de que a montadora em questão tenha sido simpática ao governo militar. Nem Elis chegou a ser um expoente contra a repressão, apesar de claramente ter se posicionado contrária ao regime. Basta lembrar outra de suas frases, numa entrevista de 1969 para a revista holandesa Tros-Nederland: “O Brasil de hoje é governado por um bando de gorilas”.
A própria música, como explicou brilhantemente o jornalista Pedro Doria, ganhou com o tempo, um sentido de nostalgia, muito adequado ao comercial.
Mas, mesmo se descontarmos os argumentos mais radicais, há que se admitir que esse filme dá margem a discussões importantes.
O deep fake, a técnica utilizada onde um algoritmo se vale de milhares de imagens reais para criar com realismo cenas inéditas, abre possibilidades que só existiam nos livros de ficção científica.
Verdade que utilizar esse potencial todo para colocar Elis Regina dirigindo uma Kombi não representa lá um uso muito ambicioso, mas é criativo, pelo menos.
Em tempos de publicidade digital, desafio o leitor a lembrar de um comercial de televisão recente que tenha sido tão comentado. Filmes como aqueles que eram lançados nos comerciais do Fantástico não existem mais. A publicidade mudou e hoje é muito mais fácil capturar consumidores por outros meios e com outras ferramentas.
O fato é que usar a Pimentinha para vender carros é um bom álibi para discutirmos a ética no uso dessas novas ferramentas, não apenas na publicidade.
Quem tem, afinal, o direito de trazer de volta à vida, pelo menos em vídeo, alguém que já morreu?
Faz parte dos direitos dos herdeiros ressuscitar digitalmente um seus antepassados?
O que torna essa discussão ainda mais importante é que ferramentas como Inteligência Artificial, Machine Learning, além do próprio Deep
Fake, não são monopólio de grandes corporações, nem necessitam de supercomputadores.
Pelo contrário. Esse mesmo vídeo que causou tanta polemica, poderia muito bem ter sido realizado – com um pouco de esforço e tempo – por um garoto em seu PC doméstico.
A disponibilidade dessas ferramentas é tão grande, elas são tão acessíveis, que faz a gente pensar se vai existir forma de conter os desdobramentos de como serão utilizadas.
Ou, quem sabe, esses limites terão que ser definidos não por leis, mas pelo nosso bom senso, o que não costuma dar resultados muito positivos.
Confesso que no caso do filme da Elis Regina, prefiro ficar do lado dos que se emocionaram.
Às vezes, mais do que questionar motivos e consequências, vale mais o humano, mesmo que produzido digitalmente.
Ou, como diria a poetisa Adélia Prado: “Às vezes olho pedra e vejo pedra mesmo”.