Comportamento

Zé Celso, o Dionísio dos palcos

O Brasil dá adeus ao mais revolucionário nome de sua dramaturgia: José Celso Martinez Corrêa. Ele deixa um legado de originalidade e irreverência construído no Teatro Oficina, símbolo de linguagem única e transgressora

Crédito: Carl de Souza

Zé Celso: vida e obra se confundiram em uma grande performance (Crédito: Carl de Souza)

Por Felipe Machado

Em maio de 1966, um incêndio destruiu completamente o Teatro Oficina, criado oito anos antes por José Celso Martinez Corrêa e seus colegas da Faculdade de Direito da USP. Os bombeiros atribuíram a tragédia a um curto-circuito; o dramaturgo acusou a ditadura militar, que já perseguia o grupo. Na manhã seguinte, atores de todas as vertentes se reuniram para organizar a realização de dois espetáculos beneficentes com o intuito de reconstruir o prédio ­— um musical, coordenado por Ary Toledo, e uma comédia dirigida por Jô Soares.

Quase sessenta anos depois, o fogo voltou a atingir o teatro brasileiro, desta vez na figura de seu maior ícone. Zé Celso foi internado na terça-feira 4, no Hospital das Clínicas, em São Paulo, vítima de um incêndio em seu apartamento provocado por aquecedor elétrico.

Sofreu queimaduras de segundo grau e não resistiu. Faleceu na quinta-feira 6, aos 86 anos. Ele havia se casado há um mês com Marcelo Drummond, seu companheiro há mais de três décadas.

“O Brasil se despede de um dos maiores nomes do teatro brasileiro, um dos seus mais criativos artistas. Marcou a história das artes e não será esquecido.”
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente

Dizer que “as cortinas se fecharam” ou que Zé Celso “saiu de cena” seria uma injustiça com um artista que passou a vida demolindo clichês.

Ator, dramaturgo, ativista, revolucionário. As palavras não dão a dimensão do tamanho que esse gigante teve na nossa cultura. A trajetória do Oficina e a vida de seu fundador se confundem.

Rebatizado em 1994 como Teatro Oficina Uzyna Uzona, é um palco único no mundo. Ali o dramaturgo e a arquiteta Lina Bo Bardi trabalharam juntos para subverter o conceito das performances ao vivo.

Se outros dramaturgos discutiam o fim da “quarta parede”, o Oficina foi muito além: tornou-se um espaço sem parede alguma, onde público e elenco interagiam de maneira simbiótica, uma anarquia artística que não respondia a roteiros ou convenções — apenas aos comandos de seu dionisíaco líder.

“Louvado seja você, Zé. Não há nem haverá na nossa arte teatral alguém com sua transcendência criativa. Querido e insubstituível Zé Celso.”
Fernanda Montenegro, atriz

Clássicos

Zé Celso nasceu a 30 de março de 1937 em Araraquara, interior paulista. Iniciou sua carreira com a peça autoral Vento Forte para Papagaio Subir, criada no mesmo ano em que nascia o Oficina, 1958.

Pouco depois, em 1961, o grupo se mudaria para sua sede histórica na Rua Jaceguai, no tradicional bairro do Bexiga. O espetáculo Pequenos Burgueses, em 1963, inspirado no período pré-Revolução Russa, já antevia a ruptura que o Brasil viria a sofrer no ano seguinte, com o golpe militar.

A peça foi proibida e, a partir daí, Zé Celso virou persona non grata pelo regime — e um dos líderes da resistência civil.

Zé Celso e Marcelo Drummond: união oficializada no Teatro Oficina após 37 anos de relacionamento (Crédito:Eduardo Knapp)

O Rei da Vela, de 1967, levou ao teatro a linguagem tropicalista, que se espalhava pela música, cinema e artes plásticas. Ao combinar a autofagia de Oswald de Andrade com uma sátira ao capitalismo, transformou a obra de 1937 em um grito de protesto bem no momento em que a contracultura ecoava pelo mundo.

O espetáculo foi encenado em Paris durante os protestos de maio de 1968, tornando o teatro brasileiro internacional e permitindo que o País estivesse representado nas históricas manifestações. Na volta ao Brasil, a peça foi proibida. O grupo se reuniu para estrear um novo trabalho no Rio de Janeiro: Roda Viva, primeira peça escrita por Chico Buarque.

O grupo realizou ainda montagens clássicas, de Hamlet, de Shakespeare, a As Bacantes, de Eurípides. Sua adaptação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, ficou marcada pela criatividade, mas também pelos excessos: dividida em cinco partes, foi apresentada entre 2002 e 2007, totalizando 27 horas em cena.

Zé Celso interpretava Antônio Conselheiro, o líder da revolta popular em Canudos, de cajado em mãos e longas barbas brancas. Com sua atuação messiânica e iluminada, foi um personagem perfeito para o homem que revolucionou o teatro brasileiro.

Três atos inesquecíveis
Fundado em 1958, o Teatro Oficina é o grupo em atividade mais longevo do País

1967
O Rei da Vela

(Divulgação)

Baseado na peça publicada trinta anos antes por Oswald de Andrade, combinava a autofagia do autor modernista com uma sátira ao incipiente capitalismo brasileiro.

1968
Roda Viva

(Divulgação)

Escrita por Chico Buarque e dirigida por Zé Celso, a provocação ao regime militar suscitou a ira da extrema-direita: o teatro foi depredado e o elenco foi agredido.

2002-2007
Os Sertões

(Divulgação)

A adaptação da obra de Euclides da Cunha foi radical: encenada ao longo de cinco anos, tinha dezenas de pessoas no elenco e sua apresentação totalizou 27 horas