Brasil deve enterrar ciclo do golpismo e filme ‘Ainda Estou Aqui’ é a pá de cal
À espera de um milagre que o livre da cadeia, Bolsonaro acabou, involuntariamente, atualizando o roteiro do filme 'Ainda Estou Aqui' e “colaborando” para que o STF revise a Lei da Anistia e inclua punições a agentes que sumiram com corpos na ditadura
Por Vasconcelo Quadros
Se tivesse seguido o conselho de seu então ministro da Casa Civil, o senador Ciro Nogueira (PP-PB), conforme contou à Polícia Federal o tenente-coronel Mauro Cid no primeiro depoimento de sua extensa delação, o ex-presidente Jair Bolsonaro teria saído das eleições de 2022 como o “grande líder” da oposição ao governo Lula 3. Mas a obsessão pela ruptura da democracia, que o tornou o comandante quixotesco, mas perigoso, de um golpe de Estado que não deu certo produziu um fenômeno não previsto no plano do ex-capitão, dos políticos e dos militares que o incentivaram: além de enfrentar um processo que deve colocá-lo em breve na prisão, ele contribuiu involuntariamente para um acerto de contas entre a democracia e o autoritarismo. Um ajuste esperado há quatro décadas, fomentado agora pela extraordinária repercussão internacional do filme Ainda Estou Aqui.
A obra do diretor Walter Salles, estrelada pela atriz Fernanda Torres, ganhadora do Globo de Ouro e uma das três indicações do filme para o Oscar (as outras foram para melhor filme e melhor filme estrangeiro), recoloca na agenda do País, pela história da advogada e ativista dos direitos humanos Eunice Paiva, o drama de outras 250 famílias de opositores do regime militar de 1964 que, assim como o ex-deputado Rubens Paiva, foram presos, torturados e desapareceram nos porões do regime que assassinou 434 brasileiros.
A patética aventura golpista de 8 de janeiro de 2023 nada mais foi do que uma tentativa de restabelecer a cultura e o espírito da ditadura de 21 anos, com seus cadáveres insepultos. Aos poucos, como disse à ISTOÉ a presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a procuradora da República Eugênia Gonzaga, vai se ampliando na sociedade a compreensão de que a impunidade conveniente aos agentes da ditadura estimulou a ala do Exército que cultivava a cultura autoritária de 1964 a tentar um novo golpe.
A releitura do período militar coloca na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) dois recursos que pedem a revisão da Lei da Anistia de 1979. Grupos com assentos nas comissões de Anistia e da CEMDP do Ministério dos Direitos Humanos também pressionam o governo a determinar que a cúpula das Forças Armadas — a mesma que ouviu Bolsonaro pedir apoio ao golpe e não o prendeu — abra arquivos ainda secretos e esclareça como morreram e onde foram parar os corpos dos militantes. Eugênia diz que os militares fizeram uma “limpa” nos arquivos do Exército, Marinha e Aeronáutica para dificultar pesquisas, mas que informações sobre o destino dos restos mortais dos desaparecidos foram recolhidas por grupos de militares bolsonaristas que estão na reserva.
Bolsonaro contribuiu involuntariamente para o projeto de revisão, fomentado pela repercussão de Ainda Estou Aqui, com Fernanda Torres na pele de Eunice Paiva (acima com os filhos e no alto com o marido Rubens Paiva)
“A Conta-gotas”
É comum um informe remeter à busca de outro arquivo, no qual o documento desaparece para depois reaparecer em narrativas ou publicações com versões parciais originadas de militares. “É preciso parar com essa história de verdade a conta-gotas”, resume o ministro do STF Flávio Dino, que deu o primeiro passo para virar essa página. Em decisão inédita, tomada ainda em dezembro do ano passado, sentenciou que, uma vez não esclarecido, o crime de ocultação de cadáver, caracterizado pelos desaparecimentos forçados, permanece punível por se estender além do período previsto pela Lei de Anistia, entre 1961 e 1979.
A decisão, que ao que tudo indica deverá ser confirmada pela Corte, tem repercussão geral no País e dá norte ao Judiciário para responsabilizar agentes que participaram dos horrores praticados nos porões dos quartéis, ainda que a maioria tenha morrido. “O 8 de janeiro só aconteceu porque no Brasil não teve justiça de transição. É resultado da impunidade.” A procuradora Eugênia Gonzaga vê no plano bolsonarista um forte elo com o ciclo militar encerrado em 1985. “O que nos assusta agora é todo esse envolvimento das Forças Armadas numa situação muito parecida com 64. Fico muito assustada em saber que essas pessoas estão nas Forças Armadas.”
Enquanto aguardam a decisão do plenário do STF sobre o voto de Dino, o Ministério de Direitos Humanos e a CEMDP preparam a retificação coletiva de 414 atestados de óbito que omitem a causa mortis ou falseiam a verdade sobre execuções sumárias. Em vez de constar informações genéricas ou falsas, as certidões passam por retificação, determinada aos cartórios pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e terão um texto básico indicando “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. O governo vai formalizar um pedido púbico de desculpas a todos aos familiares de desaparecidos em nome do Estado.
O esclarecimento é reconhecido pelos familiares como um avanço, mas, na avaliação dos movimentos de direitos humanos, já amadureceu na sociedade o entendimento de que é hora de o governo adotar uma posição política firme e, pelo trabalho de instituições policiais capacitadas e perícias dotadas de tecnologia de ponta, exigir que os militares participem de uma investigação para resolver uma demanda jogada para debaixo do tapete sob ameaças do militarismo golpista.
“Romantizando”
O tenente-coronel Mauro Cid joga mais luzes no elo entre o plano bolsonarista e a ditadura.
● Ele conta no primeiro depoimento, cuja íntegra foi obtida pelo jornalista Elio Gaspari e publicada no domingo, 28 de janeiro, nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, que o ex-comandante do Exército, Freire Gomes, não aderiu ao golpe sob o argumento de que não cabia às Forças Armadas o controle constitucional nem havia indícios de fraude nas eleições.
● O militar afirmou que os golpistas estavam “romantizando” o artigo 142 da Constituição e também alertou que, se um golpe militar fosse executado, o País seria palco de um novo “regime autoritário pelos próximos 30 anos”.
● Como se vê, uma previsão que não havia nem na quartelada de 1964, que só mergulhou profundamente na ditadura com o AI-5, quatro anos depois.
Pelas declarações de Cid, Bolsonaro tentou, sim, o golpe e não queria que os fanáticos acampados em frente aos quartéis “saíssem das ruas”. Era o apoio que precisava, primeiro para dar base social à falsa denúncia de fraude na eleição e, depois, como última cartada, tentar atrair o apoio dos militares para a ruptura ostensiva e violenta, que previa inclusive o assassinato de Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do STF Alexandre de Moraes.
Mas não eram só os militares que conspiravam por medidas antidemocráticas. Cid deixa claro que havia em volta do ex-presidente postulantes da formação de um grupo armado com participação de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs). Os golpistas tinham também um braço político disposto a ajudar Bolsonaro a se manter no poder. Entre os mais radicais estavam, para espanto de uns e confirmação de outros, o rostinho angelical de Michele Bolsonaro, a primeira-dama que sempre procurou passar a imagem de dedicada esposa evangélica e o deputado Eduardo Bolsonaro, este sem surpresa.
O filho do presidente, já na campanha eleitoral de 2018, pregava escancaradamente o golpe, insinuando que era necessário apenas “um jipe com um cabo e um soldado” para fechar o STF. Juntam-se aos dois, pela ala que Cid chamou de radical, o candidato derrotado ao governo do Rio Grande do Sul, o ex-deputado Onyx Lorenzoni, os senadores Jorge Seif (SC), Magno Malta (ES) e Luiz Carlos Heinze (RS), um dos expoentes da bancada ruralista, que chegou a propor o sequestro de uma urna pelas Forças Armadas, no intuito de comprovar o delírio da fraude e o ex-ministro Gilson Machado, que ocupou a pasta do Turismo no governo Bolsonaro.
Preso, o general Mário Fernandes, autor do plano “punhal verde e amarelo”, que previa o assassinato de autoridades e a criação de um gabinete para gerir a crise que o golpe provocaria, “atuava de forma ostensiva, tentando convencer os demais integrantes das forças a executarem um golpe de Estado”.
Apoio dos cacs
Segundo o ex-ajudante de ordens, o grupo se reunia constantemente com Bolsonaro e o instigava a promover a ruptura sob o argumento de que havia apoio “do povo e dos CACs”. Cid conta que os integrantes do canal Hipócritas, Bismark Fugazza, Paulo Souza e Oswaldo Eustáquio, também se reuniam com Bolsonaro e defendiam a formação de um grupo civil armado formado por CACs, que tinham uma relação mais direta com Eduardo Bolsonaro.
Os detalhes revelados por Mauro Cid mostram que deputados e senadores de direita não só sabiam como também tramavam, como se viu na iniciativa do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, ao ingressar na Justiça com um recurso alegando fraude na eleição. O ministro Alexandre de Moraes percebeu a manobra, que classificou de litigância de má-fé, aplicou uma multa de R$ 22,9 milhões e bloqueou a movimentação financeira do partido à época.
Sinal dos tempos
Moraes e Dino são relatores das ações que podem resultar na dupla punição ao golpismo: os que praticaram crimes na ditatura e os que tentaram no 8 de janeiro. O STF pode colocar em pauta uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADP153), que pede uma revisão na Lei da Anistia de 1979, ou fazer a mudança indiretamente, seguindo o voto de Flávio Dino sobre a legalidade de punir quem matou e sumiu com os corpos. É uma rara oportunidade de encerrar o histórico ciclo do golpismo. Tudo, evidentemente, “dentro das quatro linhas” da Constituição. Para Bolsonaro e sua patota extremista não se decepcionarem.