Caetane-se
Por Pedro Franco
Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas na casa dos Veloso essa máxima não se sustenta. Difícil imaginar que a mesma família nos deu dois dos maiores artistas que a cultura brasileira já viu: Caetano Veloso e Maria Bethânia. Não são apenas irmãos de sangue; são almas que, através de suas vozes e pensamentos, moldam gerações.
Eis que recentemente, “alguma coisa acontece(u) com o meu coração”, que show ! E em “Sampa” !
Um verdadeiro oásis em meio às secas intolerâncias do mundo contemporâneo. Quando o absurdo se torna cotidiano e a fadiga nos rouba as palavras, a arte de Caetano e Bethânia chega como um bálsamo. É como se o caos se dissipasse. Entre canções, olhares e silêncio, ali estava a vida em sua forma mais plural e poética.
No palco, as vozes de Caetano e Bethânia ecoam toda a pluralidade e generosidade da verdadeira Brasilidade: as raízes indígenas, os orixás, a força das mulheres, a luta de classes, o amor LGBTQIA+, a filosofia que nos escapa e a poesia que nos reconstrói.
Um show que transcende a música e se torna resistência, um manifesto de amor à brasilidade em toda a sua complexidade.
Como em “Vaca Profana”, Caetano nos evidencia os ensinamentos de Foucault:
“De perto, ninguém é normal”.
Talvez essa a receita para um artista cuja obra atravessa quase 65 anos de história.
Desde os dias da Tropicália, quando ousou desafiar padrões e trouxe a liberdade para a música popular, até hoje, sua trajetória é marcada pela coerência e provocacionismo.
Um provocacionismo necessário que nos aponta aonde (nós) sociedade deveria estar Bethânia, por sua vez, é a intérprete absoluta, que faz cada palavra ganhar novas dimensões. Seu timbre tem a força das águas, dos ventos e da terra. É quase sagrado assistir a Maria Bethânia.
De tão perfeito, Caetano se fez verbo, eternizado na voz de Fagner em “Retrovisor”:
“Vamos nós dois caetanear…”.
Mas o convite se estende a todos: vamos caetanear, como ato de resistência, beleza e reflexão.
Porque estar com Caetano é estar do lado certo da história…
Em suas canções, a poesia se entrelaça à atualidade. Atemporal e presente, como no verso de “O Quereres”:
“Onde queres revolver, sou coqueiro”.
Em cada frase, um Brasil profundo, diverso.
É preciso olhar para Caetano e para Bethânia com reverência que lhes é cabível.
Como o próprio Caetano cantou, “Oração ao Tempo” nos lembra que o tempo é o grande mestre.
Que dê a eternidade à Caetano.
Que de eternidade à Bethânia.
Dorival Caymmi nos ensinou que “quem não gosta de samba bom sujeito não é”. E eu afirmo, sem medo: quem não gosta de Caetano e Bethânia, bom sujeito não é.
Que sorte a nossa poder ouvir Caetano. Que sorte a nossa poder ouvir Bethânia. Que sorte a nossa viver em tempos em que o raio não só cai duas vezes no mesmo lugar, mas continua a iluminar a casa dos Veloso.
A verdade é que ambos já são eternos, afinal, a arte verdadeira nunca envelhece.