Cultura

Longa ‘Kasa Branca’ mostra a força do cinema da periferia

Novo filme do ator e cineasta Luciano Vidigal subverte estereótipos do morro e exalta a filosofia ‘eu sou porque nós somos’ em uma história comovente que trata, ao mesmo tempo, da juventude e do fim da vida

Crédito: Divulgação

O personagem Dé (centro) conta com suporte irrestrito dos amigos no cuidado com sua avó (Crédito: Divulgação)

Por Ludmila Azevedo

Ambientado na periferia de Chatuba, no Rio de Janeiro, o longa-metragem Kasa Branca marca a estreia no gênero ficção do ator, roteirista e diretor Luciano Vidigal, cuja ampla vivência no cinema, tanto na frente quanto atrás das câmeras, garantiu a combinação equilibrada de firmeza e sensibilidade em todas as cenas. O filme contém elementos já conhecidos da realidade no morro, como a desigualdade social, o difícil acesso, a abordagem truculenta da polícia e a indiferença do asfalto. Mas eles são apenas transversais e não centrais numa narrativa que é sobre o amor do neto pela avó, a cumplicidade dos amigos que se leva para a vida, os desejos e sonhos de jovens que deveriam ser como todos os jovens do mundo.

Inspirado numa história real, Kasa Branca é protagonizado por Dé (Big Jaum) e por sua avó Dona Almerinda (Teca Pereira), diagnosticada com Alzheimer e com pouco tempo de vida. A rotina do jovem é toda dedicada ao cuidado dela, o que compromete significativamente o orçamento daquele pequeno núcleo familiar marcado por mais de um abandono, mas Dé conta com seus amigos inseparáveis Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco) nos momentos mais difíceis.

São duas gerações negligenciadas pela sociedade:
● os idosos
● e os jovens nem-nem (nem estudam, nem trabalham).

“Eu tentei usar essa narrativa do afeto, porque eu acredito no que ele envolve. O povo brasileiro tem isso como resistência. Apesar de toda a complexidade que a sociedade apresenta, de tudo que a gente vive nesse mundo, tentei usá-la de forma verdadeira. Eu tive muito afeto da minha mãe, da minha família. Minha mãe é mãe preta, solo, teve seis filhos, de origem muito pobre, mas sempre foi muito carinhosa. Então, vi que, apesar da dureza que a vida e a sociedade impõem, há pessoas muito amorosas. Eu queria que o filme tivesse isso, apesar das dores”, diz Luciano Vidigal.

Filme mostra a ausência do pai e a perda da memória da matriarca (Crédito:Divulgação)

As singularidades de cada personagem permitem ao espectador entender seus conflitos centrais, de acordo com o diretor. “Durante 40 anos que tive experiência como morador de favela, percebi que as pessoas são muito resistentes, batalhadoras, humanas e isso também tem um teor muito político. O filme traz uma reflexão para a gente repensar o Brasil. Há essas outras camadas como o abandono, o serviço público que não chega com eficiência, o racismo, tudo está ali, de forma sutil. Não é carro-chefe, mas é diário. As camadas e as sutilezas também refletem algumas denúncias, no entanto a principal narrativa de Kasa Branca é envolver a leveza, afeto, amizade e subverter os estereótipos”, explica.

(Divulgação)

O elenco combina estreantes a rostos mais familiares do grande público, como Babu Santana (também cria do Vidigal, com atuações em Cidade de Deus, Tim Maia e em dezenas de filmes), que vive o pai de Dé, e a talentosa Gi Fernandes (na televisão está em Mania de Você e Os Outros).

A interpretação sensível de Big Jaum é um dos pontos altos. “Foi maravilhoso trabalhar com os atores. Eu queria muito que os protagonistas não fossem muito famosos. Queria buscar um corpo jovem, potente, preto. Muito nesse teor de poder lançá-los. Você tem o Babu Santana, a Roberta Rodrigues, o Otávio Müller e a Gi Fernandes, que é um fenômeno, que agora está fazendo novela na Globo, mas fez o teste. Eu adorei essa menina. Eu adoro trabalhar com jovens, o processo com os atores. Tem que ser nessa base do amor e foi um processo profundo. Comigo na preparação estava a Fátima Domingues, que é uma diretora de teatro, do Nós do Morro. Foi massa, foi enriquecedor. Acho que o que está na tela é a consequência”, avalia.

(Divulgação)

A força do cinema periférico

Luciano Vidigal engrossa a lista de realizadores brasileiros nascidos em periferias que vêm se destacando com prêmios nacionais e internacionais por suas obras. Nomes como Adirley Queirós, Juliana Antunes, André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Maurilio Martins e tantos outros. Ele comemora o espaço dificilmente conquistado que, por anos, era restrito a realizadores que vinham das classes média e alta. “Eu acredito que ainda é uma luta e, às vezes, cai no nicho. Muitos filmes bons não conseguem chegar ao cinema. Tenho muito orgulho dos meus companheiros e reforço que nós somos filhos do cinema digital. A gente tem essa busca pela democratização. São nossos equipamentos chegando nas aldeias indígenas, nas favelas, nos interior do Brasil. A gente está contando nossas histórias. Começaram a surgir muitas potências. É possível contribuir para a diversidade, é uma declaração de amor.”

Kasa Branca carrega consigo o forte elemento da ancestralidade de matriz africana. “Quando a gente pensa em cinema negro, há essa responsabilidade de subverter uma narrativa que sofreu durante muitos anos com o lugar do estigma, do estereótipo dos nossos corpos, mas ele é ancestral acima de tudo. Apesar de muitas referências que o filme tem, eu tenho (a cultura) Iorubá. O caminho do filme é esse lugar, que não se esquece da essência. A gente usou muito como de conceito narrativo importante, um adinkra africano, que diz o seguinte: o amor sempre encontra o caminho para casa. Construímos não só a linguagem, como o conceito fotográfico e estético da direção de arte, do figurino, além da relação com os atores. Essa é a nossa matriz,uma verdade que, às vezes, a gente busca como proteção e fortalecimento para enfrentar o mundo”, resume Vidigal. Como bem colocou Afrika Bambaataa: “Ame você mesmo, ame seus ancestrais, ame seu povo e tente fazer algo por você, pelos outros e pelo seu povo, mas principalmente respeite a Mãe Terra”.

Olhar original

Diretor começou no teatro e migrou para o cinema (Crédito:Divulgação)

Luciano Vidigal é ator, roteirista, diretor de teatro e cinema.
Estreou em 42 filmes e dirigiu um dos episódios do longa-metragem 5X Favela, exibido em Cannes.
● Sua afinidade com a arte veio quando era criança.
● Tinha 10 anos quando integrou o grupo Nós do Morro.
● De ator para cineasta, seu nome é creditado em mais de 40 filmes.

“Acho que o meu maior estágio de cinema foi a experiência que eu tive no filme Cidade de Deus em que trabalhei na pesquisa de elenco. Houve uma preparação da Fátima Toledo e toda uma discussão entre o Fernando Meirelles e a Kátia Lund sobre metodologia, direção de ator, e conceito. Como eu estava estudando cinema, aprendi muito nesse lugar, principalmente sobre direção de ator. A minha experiência como ator e essa vivência que tive com o filme, acabei adotando, especialmente a relação com o ator e a verdade, uma coisa mais naturalista, realista”, diz.

Mesmo com experiências e incontáveis presenças em sets de filmagem, Vidigal investiu na formação como roteirista e diretor por meio de cursos. “Essa salada me ajudou muito em Kasa Branca. Principalmente na formação desse conceito artístico e do trabalho com o elenco”, conclui.