Polícia que mata: é possível acabar com a violência e a corrupção nos órgãos de segurança?
Por Vasconcelo Quadros
RESUMO
● Governadores são contra PEC da Segurança apoiada pelo Planalto
● Mas episódios como o do assassinato do delator do PCC Vinicius Gritzbach, em plena luz do dia, no Aeroporto de Guarulhos, revela que os poderes estaduais não conseguem proteger, sozinhos, a vida dos cidadãos
Se passaram três meses desde que o presidente e Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com governadores, em Brasília, para pedir apoio à chamada PEC da Segurança, iniciativa que permitiria ao governo federal uma posição mais central no controle da segurança pública, área entregue totalmente aos Estados, mas que saiu do controle graças ao excesso de violência contra civis e, não isolada, a contaminação das corporações policiais pelo crime organizado.
O que está ocorrendo na tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), onde 17 policiais foram presos por suspeitas de envolvimento com o assassinato do ex-integrante e delator do Primeiro Comando da Capital, o PCC, Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, em plena luz do dia, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, revela extrema tolerância da cúpula de segurança e do governo paulista com o conluio envolvendo a banda podre da polícia com a maior organização criminosa do País.
Em 35 anos de existência, o PCC se tornou um colossal empreendimento de comércio de cocaína no atacado e varejo, controla as prisões, o crime e movimenta bilhões de reais, dinheiro que serve também para corromper as instituições de segurança e políticas, especialmente em São Paulo.
O presidente da República demonstra indignação, determina um plano que não sai do papel, mas resiste a usar a Constituição para determinar uma intervenção federal na segurança paulista. Não seria novidade: já se fez intervenção no Rio de Janeiro em 2017 pelos mesmos motivos no governo Michel Temer e pelo próprio Lula na tentativa de golpe, afastando o governador Ibaneis Rocha, no 8 de janeiro de 2023.
Governadores como o goiano Ronaldo Caiado, o fluminense Cláudio Castro e o paulista Tarcísio de Freitas (de cima para baixo) temem perder poder e controle sobre a segurança com o projeto que tem como principal entusiasta no Planalto o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski (na foto principal)
Investigações da Corregedoria da PM paulista, divulgada na terça-feira, 22, pelo jornal O Estado de S. Paulo deixam uma clara conexão entre a matança de supostos marginais em confronto com policiais da ROTA, a corrupção policial e, como não poderia deixar de ser, da existência de um braço político de apoio à banda podre da polícia ideologicamente ligado ao bolsonarismo.
No caso do delator do PCC, que vinha expondo os tentáculos da organização e os grupos de policiais civis e militares que migraram para o crime, foi claramente uma queima de arquivo, com requintados detalhes escabrosos: a execução ficou a cargo de três policiais militares da ativa, que há tempos prestavam serviços de pistolagem para o PCC.
O destino de Gritzbach foi a crônica de uma morte anunciada, de interesse do crime, da polícia e, indiretamente, do governo paulista.
● O governador Tarcísio de Freitas, que só aderiu ao uso de câmeras nas fardas dos policiais por pressão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Roberto Barroso, resiste em demitir o secretário de Segurança, Guilherme Derrite, um capitão da reserva da PM paulista que construiu carreira na ROTA matando supostos bandidos, e virou deputado federal pelo PL do ex-presidente Jair Bolsonaro.
● Investigado pela morte de 16 marginais, Derrite tinha relações com um dos investigados por suspeitas de envolvimento com o PCC, o 3º sargento da PM, que era também lotado na ROTA, José Roberto Barbosa, o Barbosinha, que disputou, sem sucesso, uma vaga para a Câmara dos Deputados em 2022.
● Ainda policial, chegou a ser afastado em 2018, por envolver-se politicamente com a ex-deputada Joice Hasselmann, ex-estrela do bolsonarismo. Na corporação, chegou a ser motorista de Derrite quando este comandava a ROTA.
● O secretário ficou famoso também por declarações que chocaram pelo excesso de autoritarismo. Numa delas chegou a afirmar que era vergonhoso ter na corporação policiais que em cinco anos de serviço se envolveram em menos de três casos de morte de suspeitos.
Entre os especialistas em segurança, o discurso de um governador e a posição do secretário de Segurança dão o tom do tipo de polícia que atuará no combate à criminalidade.
Os números do Ministério Público de São Paulo são francamente desfavoráveis à política de segurança de Tarcísio de Freitas com respeito aos direitos humanos.
● Entre 2022 e 2024 o aumento da morte de civis atingiu estratosféricos 98% de aumento, saltando no período de 355 casos para 702.
● Esse patamar só havia sido alcançado em 1992, quando o massacre dos 111 presos assassinados nos corredores ou dentro das celas do Pavilhão 9 da antiga Casa de Detenção, no Carandiru, Zona Norte da capital, revelou que a política de segurança do então governador Luiz Antônio Fleury Filho, originário dos quadros da PM, também resultara em matança descontrolada.
Pesquisador da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Rafael Alcadipani diz que o PCC está se tornando cada vez mais ousado, vem aumentando seu poder de corrupção sobre as instituições policiais e se tornando uma organização mais perigosa para o Estado e para própria democracia.
“É necessário um controle mais efetivo por parte da Polícia Militar de seus membros diante de uma infiltração extremamente perigosa do crime organizado nas estruturas de Estado.” Alcadipani considera inaceitáveis os níveis de contaminação de uma tropa de elite como a ROTA e defende investigações profundas na polícia paulista para evitar que a corrupção policial se esparrame pelo País. “Precisa identificar o tamanho desse problema porque forças de segurança não podem estar comprometidas. A gente sabe que quando o crime organizado se expande e ganha força, acaba corrompendo as instituições”.
É consenso entre especialistas que nenhum Plano Nacional de Segurança — mesmo que o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, obtenha apoio no Congresso para mudar a Constituição —, terá sucesso sem que o governo federal tenha coragem para impor mudanças. Ou convença os estados a mudar radicalmente a política de segurança estúpida, que prioriza os confrontos com elevado custo de vidas e fecha os olhos para a corrupção policial e os desvios.
Os relatórios disponíveis nas Corregedorias das polícias apontam uma simbiose macabra entre violência policial e corrupção, agora agravados por uma politização às avessas de corporações no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, que se aliaram ao pensamento de extrema direita.
Corte na carne
Em 2003, logo no início do governo Lula 1, a Polícia Federal era uma corporação que apresentava, individualmente, os mais altos níveis de desvios. A mudança veio por uma proposta do então diretor-geral, Paulo Lacerda, com apoio irrestrito do ex-ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos: antes de deflagrar uma ofensiva contra a corrupção na política, feita num ritmo e alcance até então sem precedentes à épca, a PF cortou na própria carne, depurando a instituição com a prisão de policiais. Só então pode atacar a macrocorrupção no aparelho estatal. Resguardados o tempo e as circunstâncias, como diz um ditado gaúcho, esse “cavalo encilhado” passa em frente ao Ministério da Justiça à espera de que Lewandowski o monte e faça o que se espera do poder central.