Cultura

Luiz Melodia: pérola negra da MPB ganha doc extraordinário

Resultado de uma intensa pesquisa, com imagens raras, chega aos cinemas o documentário Luiz Melodia — No Coração do Brasil, de Alessandra Dorgan. Com direção musical de Patrícia Palumbo, filme ressalta detalhes de sua vida e obra criativa e inquieta

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Luiz Melodia: sem rótulos, sem patota, e com talento descomunal (Crédito: Divulgação)

Por Ludmila Azevedo

Artista único até no sobrenome Melodia, que o acompanharia até o fim da vida, abreviada em 2017, Luiz Carlos dos Santos nasceu em 1951, no Rio de Janeiro. Suas canções foram gravadas por Gal Costa, Maria Bethânia, Zezé Motta, Céu, Arnaldo Antunes, entre outros. O cantor compositor não levou apenas a música do morro para o mundo, mas também sua alma cheia de poesia, suingue e personalidade. Sua vida e arte são narradas com maestria no documentário Luiz Melodia — No Coração do Brasil, dirigido por Alessandra Dorgan e com direção musical de Patrícia Palumbo, fazendo jus à sua grandeza.

“Desde o início, no desenvolvimento, a gente decidiu que ele iria contar sua história em primeira pessoa e que seria um filme 100% de arquivo, musical mesmo, sem esse formato padrão (de depoimentos), trazendo características de um artista como o Luiz, um cara extremamente criativo. O filme também buscou imprimir essa genialidade dele por meio de uma linguagem fora do convencional mesmo, uma linguagem poética e fluída”, explica Alessandra Dorgan.

O processo de feitura cuidadoso e artesanal, com uma montagem e desenho de som impecáveis de Joaquim Castro, levou sete anos. Estão reunidas entrevistas dadas por Luiz Melodia ao longo de sua carreira — sendo a concedida pela diretora musical, o ponto de partida para reflexões mais artísticas —, shows memoráveis, além de imagens raras e inéditas cedidas pela família e pelos amigos.

O artista carioca se recusou a gravar sambas no início da carreira. Tudo para mostrar que sua versatilidade era à prova de rótulos (Crédito:Divulgação)

Um dos pontos sublimes do documentário é a possibilidade de cantar junto com o artista as mais de 30 músicas combinadas com depoimentos e que permeiam diferentes momentos de sua trajetória. Algo raro na estética vigente do gênero. “Eu também tenho essa mesma impressão. Assisto a muitos documentários sobre músicos, autores, compositores, instrumentistas e, às vezes, falta música. Tem muita conversa, muita gente falando sobre aquele artista, mas música mesmo, não. Tanto a Alê quanto eu, a gente acredita que a música é capaz de contar a história, sobre esse personagem que é o autor, que é o intérprete, a partir de suas escolhas”, conta Patrícia Palumbo.

(Divulgação)

Lugar ao sol

Outro ponto-chave para entender por que a projeção de Luiz Melodia não foi tão merecida quanto o seu talento está nas entrevistas que insistiam em questionar tanto a ausência de gravadora — quando era o caso — como as exceções que ele devesse fazer em nome de emplacar hits. “Eram perguntas que até o culpavam por isso. É uma coisa que fica ali meio impressa nessa sequência de entrevistas. ‘Melodia, por que você está desempregado? Melodia, você aprontou muito? De onde vem a sua fama?’ E ele se justificando. Como se um artista precisasse justificar o seu lugar dentro do mercado fonográfico, sendo que quem pauta esse mercado não é o artista. O mercado é muitas vezes ajudado pela mídia. Então, quando a gente vê, percebe que muita coisa está sendo repetida o tempo todo, até hoje”, diz Patrícia.

“Na pesquisa eu me deparei de cara com esse confronto que ele teve durante toda a carreira com o mercado fonográfico, com a imprensa. Muitas vezes era a cobrança da construção de uma imagem. Queriam ‘encaixá-lo’ e ele, na verdade, sabia muito bem o que ele queria artisticamente. Mas a gente teve a preocupação de não bater tanto nessa mesma tecla. Acho que para tirá-lo desse lugar de que havia uma revolta contra o mercado fonográfico. O que eu acho que é bem marcado é aquilo que ele perseguiu durante toda a carreira. A gente mostra essas outras facetas tão mais interessantes, tão mais grandiosas do Luiz e consegue deixar isso vivo, como o artista que dançava, era um showman, tinha sua forma de compor, a sua poesia, a sua relação com espiritualidade, as suas origens, as suas referências artísticas no morro. A gente o deixou livre no filme para que se enxergasse além do rótulo que ele recebeu a vida toda”, completa Alessandra Dorgan.

 

Arqueologia musical

A qualidade da narrativa combinada com a inovação — os restauros dos áudios, especialmente, são impressionantes — expuseram para a equipe um problema permanente do audiovisual brasileiro. Por um lado, Luiz Melodia — No Coração do Brasil celebra uma importante arqueologia musical de um grande artista. Ao mesmo tempo, expõe diferenças entre preservação de acervos por parte de Centros de Documentação que foram acessados durante a produção.

Ainda que algumas imagens com imperfeições estejam longe de ser um problema, nomes como Luiz Melodia e outros artistas que passeiam pelo documentário nem sempre têm seus registros devidamente preservados ou digitalizados para posteridade. “A gente conseguiu salvar vários arquivos. Aquela entrevista que o pai do Melodia dá para uma TV local no Rio de Janeiro, estava com chiado, mono, bem deteriorado mesmo. No começo, sem solução. Mas foi possível usar com as ferramentas que tínhamos. Eu acho que até pouco tempo atrás, esse filme ia ter um som muito prejudicado. Então, essa inovação foi um salto importante”, explica a diretora.

Luiz Melodia gravou samba quando bem entendeu, imprimiu sonoridade rock, jazzística e experimental em sua discografia. Talvez, aguardando, como nos versos do amigo Sérgio Sampaio, os melhores dias que virão.

“No filme, ele diz que a única patota dele era o Sérgio Sampaio. O Luiz teve um momento pós-tropicalista, quando ele deu músicas para a Gal Costa, para a Maria Bethânia, no momento em que a poesia dele conversava com a poesia marginal dos anos 70, de Wally Salomão, de Torquato Neto. Mas ele não era parte da turma, ele era um outsider nessa turma.Ele faz parte dessa turma quando a gente olha hoje, de longe, para esse lugar, quando você olha para a evolução da canção no Brasil, para essa tal que os acadêmicos chamam de linha evolutiva da canção brasileira. Ele está inserido ali, porque a lírica dele, a poética dele é uma poética absolutamente pós-tropicalista, porque é coloquial, porque vem do morro. Quando você olha para a obra, ela tem uma importância grande no movimento pós-tropicalista e carrega esse conceito por todo o tempo. E ele só vai gravar um disco de samba mesmo no fim da carreira. Então, tem uma importância gigante nesse momento aí e uma importância gigante para a música contemporânea”, conclui Patrícia Palumbo.