Brasil

A democracia ainda corre riscos; entenda

Crédito: Claudio Reis

Se os bolsonaristas tivessem dado o golpe, o ato neste 8 de janeiro não teria sido realizado: Lula poderia estar morto (Crédito: Claudio Reis)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

● Relatórios da PF demonstram que os grupos radicais que tentaram o golpe em 2022 ainda estão ativos e representam ameaça à integridade de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes
● As investigações avançaram, mas ainda não esclareceram por que autoridades que sabiam da trama se omitiram

Dois anos depois dos ataques do 8 de janeiro aos prédios dos Três Poderes, em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou 313 agressores, absolveu três e fechou 521 acordos de não persecução penal, aplicando a justiça a cerca de um terço dos alvos das 1541 ações penais abertas contra participantes dos atos antidemocráticos. As operações mais relevantes viriam, no entanto, entre 19 de novembro e 14 de dezembro, com as prisões de seis oficiais militares, entre eles dois generais, um deles de brigada, Mário Fernandes, e o outro de cinco estrelas, o ex-ministro e ex-candidato a vice do ex-presidente Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, o número dois na hierarquia da organização criminosa que tramou uma nova ruptura da democracia no Brasil 39 anos depois de encerrada a ditadura militar.

Entre políticos e agentes de segurança civis e militares, a Polícia Federal indiciou 37 pessoas (27 deles militares), colocando Bolsonaro no topo do grupo e responsabilizando-o por ações premeditadas para anular a eleição presidencial de 2022 e assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do TSE. Embora tenham esmiuçado o plano, reconstituindo os 69 dias de ação dos golpistas, as investigações da PF ainda não foram suficientes para colocar Bolsonaro na prisão.

O que elas revelam como subproduto é, na verdade, uma grande preocupação: o extremismo sobrevive e ainda representa uma ameaça à democracia e à integridade física de autoridades. Provoca perguntas que não foram respondidas ainda. Os fatos relatados pela PF mostram que falta esclarecer por que autoridades civis e militares que tinham o dever de interromper o movimento e prender Bolsonaro com todos os golpistas não agiram diante de ações preparativas que, amplamente conhecidas nos meios militares, de segurança e de inteligência, só pegariam de surpresa os alvos dos criminosos?

No meio do povo, Lula lembra os dois anos da tentativa de golpe: os mandantes ainda não foram condenados, o que pode acontecer quando Moraes (abaixo) determinar as penas (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)
(Marcelo Camargo/Agência Brasil)

● O relatório da PF indica que Lula, Alckmin e Moraes seriam arrebatados num momento em que Bolsonaro, dissimulado e traiçoeiro, fingia cumprir a liturgia de transição de governo para encobrir ações clandestinas.

● Os órgãos de segurança encontram dificuldades para identificar e conter boa parte dos extremistas — como o homem que se explodiu na rampa de acesso ao STF -, mas não têm dúvidas de que eles ainda representam riscos.

● O relatório da PF alerta para um “radicalismo que ainda se encontra em estado de latência em parcela da sociedade”. A conclusão sinaliza que Lula e Moraes, que hoje andam com segurança reforçada, ainda são potenciais alvos dos extremistas.

O ministro deixou clara essa apreensão ao receber, ainda em dezembro, um grupo de delegados civis, em seu gabinete, em Brasília. Afirmou que tem gente no Ministério Público e no Judiciário que ainda não percebeu os riscos que o País correu “e nem o perigo de isso ressurgir”.

Em reportagem da colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, o ministro explica didaticamente que “polícia na ditadura não é polícia. É braço armado do ditador. Ministério Público, Judiciário, na ditadura, não têm independência nenhuma. Também são braços jurídicos da mesma ditadura”.

Manifestantes na Paulista exigem que Bolsonaro e seus seguidores paguem pelos crimes contra a Democracia (Crédito:Andre Penner)

O Exército sabia

Nos bastidores, uma infinidade de políticos, dirigentes policiais, militares de alto coturno e até os fanáticos acampados em áreas de segurança em frente aos quartéis, “gentilmente” cedidas pelo Exército brasileiro, sabia que a trama ganhava corpo.

Os dois principais comandantes militares, o do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e o da Aeronáutica, tenente-coronel brigadeiro Carlos de Almeida Araújo Júnior, hoje celebrados como os heróis que resistiram à intentona, sentaram-se com o ex-presidente Jair Bolsonaro e conheceram os termos do decreto ilegal que anularia a eleição. No final, só não aderiram. Freire Gomes chegou a receber uma versão modificada da minuta golpista, mas o máximo que chegou em termos de providências foi avisar o ex-presidente que, se insistisse na ruptura, poderia ser preso, versão que só seria conhecida 14 meses depois. A PF chegou a discutir a possibilidade de indiciar os dois militares por prevaricação, mas no final desistiu, deixando que o caso seja avaliado com base no código militar quando chegar ao Superior Tribunal Militar. O lacônico texto do artigo 319 do Código Penal diz com clareza que quem atua de forma contrária à lei, retarda ou deixa de praticar um ato de ofício para atender seus interesses comete crime de prevaricação, punível com detenção de três meses a um ano, uma pena leve se comparada com os crimes em que foram indiciados os golpistas.

O procurador de Justiça paulista, Roberto Levianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC), não tem dúvidas de que houve omissão criminosa e que os civis prevaricaram, mas acha que por ser um crime menor, a PF optou por centrar o foco na tentativa de golpe, abolição violenta do Estado de Direito e organização criminosa, crimes mais pesados e puníveis com penas que variam de 11 a 28 anos de reclusão.

A gravidade do cenário, diz ele, deve ser levada em conta para impedir a anistia pretendida por Bolsonaro. “Isso é inadmissível e não se pode nem cogitar porque seria um crime contra a cidadania. Se há uma percepção generalizada de que a impunidade reina, a anistia pioraria muito o país”.

Com a participação de militares, bolsonaristas tomam as sedes dos Três Poderes, há dois anos, e depredam os bens públicos (Crédito:Sergio Lima)

O que houve no comando dos dois principais órgãos de segurança e inteligência da República, a PF e Agência Brasileira de Inteligência (Abin), foi mais grave: os dirigentes tinham a obrigação de saber o que ocorria, não agiram e também “não perceberam” a atuação de agentes que colaboraram escancaradamente com o plano golpista.

● No período sob o controle do bolsonarismo, a PF era dirigida pelo delegado Márcio Oliveira e a Abin pelo ex-capitão do Exército Victor Filismino Carneiro.

● O policial federal Wladimir Soares, que atuou na segurança do então presidente eleito, forneceu aos Kids Pretos todas as informações relevantes sobre a segurança de Lula.

● Soares foi afastado depois que a equipe de segurança de Lula, chefiada pelo delegado Andrei Rodrigues, atualmente diretor-geral da PF, descobriu que ele frequentava o acampamento dos golpistas no QG do Exército, em Brasília.

● Preso, o agente contou em depoimento que foi cooptado por outro policial federal, Alexandre Ramalho, lotado na Abin, para onde foi a convite de um dos 37 indiciados, o deputado e delegado federal Alexandre Ramagem.

● Nos momentos mais agudos antes da posse de Lula, por muito pouco não houve um confronto armado entre os Kids Pretos e a tropa de elite da PF, o Comando de Operações Táticas (COT), considerada pelos organismos internacionais a mais bem treinada da América do Sul, e que vem sendo empregada discretamente contra os extremistas.

(Andressa Anholete)
Sob comando dos generais Braga Netto (primeiro acima) e Mário Fernandes, bolsonaristas ameaçaram matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Os preparativos

No dia 12 de dezembro, com os preparativos do golpe sendo ultimados, os Kids Pretos participaram da invasão do prédio da PF, puxaram os grupos que atearam fogo em carros e ônibus na Esplanada, aos gritos de “guerra civil”, mas desistiram de se aproximar do hotel onde Lula ficou hospedado durante o período da transição. Um relato do próprio agente federal que mudou de lado a um dos seguranças de Bolsonaro, Sérgio Cordeiro, preso desde maio por participar das fraudes no cartão de vacinação do ex-presidente, mostra como as duas tropas de elite estiveram próximas de um conflito.

No dia seguinte à baderna, que resultou na prisão do cacique xavante José Acácio Serere, Soares alerta: “Eles acionaram o COT. É uma equipe do COT. Como o Lula estaria ali no prédio, né, no Meliá, ficou à disposição, próxima”, informa o policial, se referindo a movimentação de agentes no setor hoteleiro onde Lula estava hospedado. Para garantir proteção ao presidente eleito e inibir as ações dos Kids, os agentes do COT chegaram a se hospedar num hotel próximo, o Windsor.

O COT é responsável por centenas de prisões executadas nos últimos anos pela PF sem a necessidade de disparar tiros. Seus agentes agem sempre com rapidez, têm a surpresa a favor e capacidade de mobilidade para estar em qualquer lugar do país em três horas. Eles participaram das prisões dos Kids em novembro.

A Polícia Federal deve concluir nos próximos dias o inquérito sobre a Abin Paralela, estrutura clandestina de espionagem controlada por Ramagem e vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

● A Abin foi escancaradamente usada pelo general Augusto Heleno, para atender o plano golpista.

● Ramagem deixou o cargo em abril de 2022 para disputar a eleição. Em seu lugar ficou Filismino Carneiro, que permaneceu no cargo até o final de 2022.

● Segundo o relatório da PF, o policial federal Marcelo Bormevet e o subtenente do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues foram deslocados para a Abin com a missão de desacreditar as urnas eletrônicas, atacar ministros do STF, e a própria PF.

No relatório da Operação Contragolpe, a PF anotou um comentário de Ramagem, enviado a Bolsonaro, que supostamente aprofundaria seu envolvimento com o golpe. “A presidência detém o monopólio do uso legítimo da força. Se inevitável, a estratégia tem tanta importância quanto a execução, em diversos flancos”.

Os documentos em poder da PF mostram que Ramagem teve uma atuação intensa a favor dos golpistas entre 05 de maio de 2020 a 21 de março de 2023. Segundo a PF, a Abin foi usada por Ramagem “com evidente desvio de finalidade e em nível preponderante para as ações do grupo criminoso”.

Apesar da intensa movimentação golpista, não se sabe de nenhum informe da Abin ou da PF alertando o Ministério Público Federal ou o STF sobre os riscos de ruptura. Com comandos subordinados ao então ministro da Justiça, Anderson Torres, que é delegado federal e também foi indiciado pela tentativa de golpe, e aos generais golpistas que cercavam Bolsonaro, PF e Abin, não registraram nenhum alerta sobre a movimentação dos Kids Pretos que, numa situação normal, também jamais passaria sem ser notada pelo poderoso Centro de Informações do Exército (CIE).

No dia 19 de novembro, enquanto Lula recebia chefes de Estado na reunião do G-20, a PF deflagrava a Operação Contragolpe (sequência conclusiva da ação de fevereiro, a Tempus Veritatis) e realizava, no mesmo Rio de Janeiro, as prisões do general Mário Fernandes e de outros três oficiais militares graduados.

Uma semana depois, com a retirada do segredo da operação, o País ficaria assustado com os detalhes.
● A leitura das 1105 páginas dos dois relatórios revelava que a loucura golpista é uma história sem fim e vai mais longe: agora se sabe que os militares foram presos porque havia suspeitas de que voltassem a atentar contra a vida de Lula.
● Por cautela, ao identificar a movimentação dos quatro Kids na cidade nos mesmos dias da realização do G-20, a PF não quis correr riscos.
● Pediu e Moraes autorizou a prisão dos militares, no Rio, e do agente federal Wladimir Soares, em Brasília.
● O diretor geral da PF, Andrei Rodrigues, explicou que a prisão foi também uma ação preventiva. “Não íamos pagar para ver”.

Rodrigues investigou as entranhas do grupo radical. O delegado foi chefe da segurança de Lula durante a campanha. Até a eclosão da barbárie do 8 de janeiro, conseguiu prender, em várias operações entre a campanha e a posse, pelo menos 30 extremistas de direita que, direta ou indiretamente, ameaçaram a vida de Lula. No dia 7 de janeiro de 2023, redigiu um relatório profético alertando as autoridades para o que viria no dia seguinte: nenhum manifestante que gritava pelo golpe deveria deixar o acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília. Chegou a antecipar que se o deslocamento fosse permitido, os golpistas invadiriam os prédios do STF, Palácio do Planalto e Congresso. O alerta foi ignorado pelo Exército e pelas polícias civil e militar do Distrito Federal. Não por leniência, mas por sérias suspeitas de conivência.Todos os órgãos de segurança e de inteligência, que deveriam agir preventivamente, ainda estavam sob o controle de Bolsonaro, inclusive os que eram de responsabilidade direta do governador Ibaneis Rocha, que chegou a ser afastado por omissão.

Alta periculosidade

Para a PF, é necessário separar os extremistas em dois grupos.
Um deles, considerado de alta periculosidade pelo treinamento especial que recebe, é formado por militares da ativa e da reserva, policiais e ex-policiais, identificados ideologicamente com a extrema direita. Nesse grupo estão os Kids Pretos, a vanguarda do golpismo. Meticulosos, tinham a certeza de que escapariam impunes, mas acabaram sendo “traídos” por Bolsonaro, que na hora H se acovardou, desistiu de assinar o decreto golpista e, sabendo que estava enfiado até o pescoço na trama, fugiu para os Estados Unidos.
Um segundo grupo é o dos bolsões radicais, formado por seguidores do “mito”. São os fanáticos que batiam continência a pneus e chegaram a comemorar a “prisão” de Moraes na sucessão de delírios nos acampamentos em frente aos quartéis. Foram usados como massa de manobra pelos militares golpistas. É o caso do catarinense Francisco Wanderley Luiz, o chaveiro que tentou invadir o STF no dia 13 de novembro e acabou se matando ao detonar explosivos que carregava no corpo. Milhares deles ainda estão “por aí” em busca de uma causa.