Fernanda Torres marca um ‘golaço’ e a vibração vai além do cinema
Por Ludmila Azevedo e Luiz Pimentel
RESUMO
● O feito histórico de Fernanda Torres como melhor atriz em filme dramático no 82º Globo de Ouro acende o orgulho do cinema nacional
● Prêmio ajuda a impulsionar internacionalmente a carreira de Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva
● O filme reverbera os anos de chumbo da ditadura militar e reforça a necessidade de se garantir a democracia
Já era madrugada de segunda-feira, 6 de janeiro, quando as seis atrizes concorrentes ao Globo de Ouro na categoria “Drama” foram anunciadas pela premiada Viola Davis. A apresentadora completava o estrelato representativo do seletíssimo grupo disputante — todas na faixa entre 49 e 64 anos. Quando a atriz norte-americana completou a frase “and the Golden Globe goes to….” com a pronúncia do nome vencedor começando com a letra “F”, Fernanda Torres disse que seu mundo parou naquele momento. “Meu Deus, eu não preparei nada porque eu já estava contente (com a indicação). Foi um ano incrível para as atuações femininas. Há tantas atrizes aqui que eu admiro tanto”, disse surpresa em seu discurso. Simultaneamente, acontecia uma explosão na madrugada brasileira, de gritos semelhantes à comemoração de um gol em Copa do Mundo de futebol.
É natural que no dia seguinte, a analogia da conquista tenha contaminado todo o noticiário e até a própria vencedora, que chamou o feito de “meu momento jogador de futebol”. A conquista de Fernanda Torres e do filme reforçam nosso orgulho, prestígio e senso de identidade nacional, ironicamente, na semana em que um atentado à democracia e tentativa de resgate da infâmia ditatorial completa dois anos de seu fracasso.
“Eu acredito que há um aspecto simbólico da maior relevância na proximidade do 6 de janeiro e dessa imensa vitória de Fernanda Torres com o 8 do 1. É quase um lembrete. Dizem que a história é isso. É preciso lembrar do que aconteceu há dois anos para que não permitamos que isso se repita”, afirma a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que parabenizou Torres após o Globo de Ouro, discursou na quarta, 8, em cerimônia que compôs uma série de eventos em referência aos episódios da fatídica data e lembrou: “Se ainda estamos aqui, é porque a democracia venceu”.
O escritor e poeta Oscar Wilde sentenciou com propriedade a função artística há 143 anos em The English Renaissance of Art: “O bem que obtemos da arte não é o que aprendemos com ela; é o que nos tornamos por meio dela. Sua verdadeira influência será dar à mente aquele entusiasmo, acostumando-a a exigir dela tudo o que pode fazer para reorganizar os fatos da vida comum para nós”.
O aforismo serve como uma luva no caso de Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, onde Torres revive a história real de Eunice Paiva, advogada e mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva. Ela passou 25 anos buscando a verdade sobre Rubens Paiva (interpretado no longa por Selton Mello), seu marido que foi sequestrado pelo regime dentro de casa no feriado de 20 de janeiro de 1971 e morto sob tortura pela ditadura militar.
Fernanda Torres brilha em cena ao dar o tom sóbrio e discreto de Eunice Paiva que, após o desaparecimento do marido em 1971 tornou-se uma importante voz na luta pelos direitos humanos
O crítico de cinema Pablo Villaça pontua que ainda são produzidos poucos filmes sobre a ditadura no Brasil. “O cinema é o registro da memória, ele ajuda a despertar a consciência coletiva sobre determinados períodos da história. No caso de Ainda Estou Aqui, Walter Salles, com muita sensibilidade, conseguiu o mérito da identificação com o espectador porque se trata de uma família de classe média perseguida. Não é um guerrilheiro, não é a história do Batismo de Sangue, do Frei Betto. É importante frisar que o medo da repressão naquela época atingia todo mundo”, explica.
Para o professor de Filosofia Política Edson Teles, “o filme permite-nos conhecer a ditadura militar brasileira, colaborando para reparar o sofrimento das famílias dos opositores desaparecidos e de todas as vítimas do regime de exceção. No entanto, sua narrativa vai além disso, mostrando a relevância e as dificuldades na elaboração da memória coletiva (nacional ou familiar), em especial quando se trata de lembranças e esquecimentos sobre momentos traumáticos e violentos”.
Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva nasceu em São Paulo, em 1929.
● Em 1952, ela se casou com o engenheiro Rubens Beyrodt Paiva, com quem teve cinco filhos.
● Ele atuou como deputado federal em 1962, mas em 1964, com o início do regime militar, seus direitos políticos foram cassados.
● A família morava no Rio de Janeiro quando Paiva foi preso, torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI, em janeiro de 1971.
● Na mesma ocasião, Eunice e sua filha Eliana, de 15 anos, foram detidas.
● Sem respostas sobre o paradeiro do marido, ela voltou a morar em São Paulo com a família, formou-se em Direito e virou símbolo da luta pela democracia e defesa dos povos indígenas.
● Em 1996, após sancionada a Lei dos Desaparecidos por Fernando Henrique Cardoso, foi emitido o atestado de óbito de Rubens Paiva.
● Na época, ela disse: “É uma sensação esquisita sentir-se aliviada com uma certidão de óbito”. Eunice morreu em 2018 aos 86 anos.
Teles, a exemplo de Vera, filha de Eunice e Rubens Paiva, detida junto com a mãe, aos 15 anos, era uma criança de 4 anos quando foi levado pelos agentes da ditadura com a irmã e adultos da família. “Os anos se passaram, e aquela história teve de ser escondida durante o restante da ditadura, por mim, por meus familiares e por todos que quisessem preservar suas vidas. Na democracia, por mais que eu e outros falássemos sobre o assunto, o que não é fácil do ponto de vista emotivo e psicológico, não havia escuta. Quando um filme como este surge, você se fortalece, entende melhor o motivo de ter sofrido tanto quando teve um presidente que elogiava torturadores, ressignifica suas lembranças, realoca as memórias em posições mais fortalecidas e abre possibilidades para outras afetividades, compreensões e relações”, revela.
Holofote internacional
A conquista de Fernanda Torres no Globo de Ouro é inédita para a categoria, mas não é a única. Em 1999, o Brasil concorreu com a mesma formação ao prêmio — Central do Brasil, também de Walter Salles, como produção estrangeira, e Fernanda Montenegro, mãe da heroína atual, pela atuação. O filme levou a estatueta, mas Fernandona, como é carinhosamente chamada, não. O que ficou entalado na garganta do público e da filha, que fez referência no discurso de agradecimento, até agora. Antes disso, Orfeu Negro, baseado em peça de Vinicius de Moraes, com trilha de Tom Jobim, dirigido por Marcel Camus e rodado no Brasil, venceu como película estrangeira, o que nos confere significativa participação no feito.
“Eu sabia que ela ia ganhar. Porque mistério esse, não sei, mas eu sabia que a minha filha ia ganhar esse prêmio, e ganhou. É uma convergência de uma vocação que ela herdou certamente de mim. Eu tenho praticamente 100 anos de vida, eu nasci no fim dos anos 20. Quis Deus que eu viesse sobrevivendo e tivesse a noite de ontem — não porque ganhou um prêmio nos Estados Unidos — é o que isso representa para a cultura geral brasileira”, disse Fernanda Montenegro.
Ainda Estou Aqui nasceu em 2015, 12º livro de Marcelo Rubens Paiva, que ficou famoso logo na estreia, em 1982, quando escreveu em Feliz Ano Velho sobre o acidente após um mergulho num lago onde fraturou uma vértebra do pescoço e ficou tetraplégico. Na narrativa de memórias da mãe, que já levou mais de três milhões de pessoas aos cinemas, são contados para o mundo, sem que se recorra a um segundo de tortura durante os 137 minutos da película, os horrores cometidos pelo regime ditatorial militar, que vigorou no País entre 1964 e 1985. Em 2024, o livro alcançou a marca dos 100 mil exemplares vendidos.
Esse recorte político do filme e consequente contextualização do emaranhado violento que, imaginava-se, ficara para trás com o final da soberania militar brasileira, explica o Brasil desde o final dos anos 1960, a época mais brutal do regime, até hoje, literalmente, já que Ainda Estou Aqui teve e terá ainda mais consequências políticas e sociais.
A gênese parte de (mais) uma fake news de Jair Bolsonaro, que morava na paulista Eldorado durante a adolescência quando o capitão Carlos Lamarca desertou do exército, liderou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que passou em fuga pela cidade do Vale do Paraíba. Adolescente, Jair criou a história de ter denunciado à época que Rubens Paiva teria ajudado Lamarca na fuga para o Nordeste, onde foi morto em 1971, pois a família do primeiro possuía propriedade em Eldorado.
A cascata passou como tal pela história até que em 2014, quando Bolsonaro era deputado federal, cuspiu no busto que homenageava o ex-deputado Rubens Paiva chamando-o de “comunista desgraçado” e “vagabundo”. A Comissão da Verdade havia sido instituída dois anos antes pela presidente Dilma Rousseff, uma das torturadas pelo regime, e começou a investigar as violações da ditadura militar no País.
O rancor bolsonarista atacou novamente em 2016, quando houve a votação que culminou no impeachment de Dilma — em seu voto, Jair exaltou o torturador da então presidente, coronel Brilhante Ustra, “o terror de Dilma Rousseff”, em suas palavras.
Marcelo Paiva levou todos esses anos tranquilamente calçando luvas de pelica para dar a resposta (pelo X, ex-Twitter) após a cerimônia: “Tentaram acabar com o cinema brasileiro, criminalizar leis de incentivo à cultura, mas nós ainda estamos aqui. Eles se vão, a gente fica! Viva Fernanda Torres e Montenegro, Sônia, Marília, Glauber, Nelson, Babenco, Walter, Meirelles, Padilha, Kleber, Karim, Anselmo e tantos”.
Poder do audiovisual
Para o crítico Pablo Villaça, a visibilidade do longa lança luz sobre o investimento no audiovisual e na arte. São dois anos desde que o País voltou a ter o Ministério da Cultura. “É fundamental entender o papel da cultura para a nossa economia, o quanto ela movimenta. Com o sucesso de Ainda Estou Aqui, nos vemos diante de duas possibilidades: a de comemorar e torcer por mais prêmios e a de silenciar essas vitórias. Quem não está celebrando porque acha que é uma questão de alinhamento ideológico ou não, assume com esta omissão, a defesa de um discurso anti-democrático.”
Ato contínuo, ao assumir a presidência em 2019, Bolsonaro extinguiu de cara o Ministério da Cultura, esvaziou e ameaçou a Ancine e aparelhou a Comissão da Verdade em manobra que culminou com sua extinção. Ele primeiro infiltrou militares e integrantes do seu partido na época, o PSL, na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com o endosso da então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Não satisfeito, ironizou até o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, dizendo que sabia como o pai dele, Fernando Santa Cruz, havia desaparecido durante os anos de chumbo.
● A Comissão da Verdade somente foi reaberta em 30 de agosto de 2024, Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados.
● O trabalho voltou a ser o reconhecimento das vítimas da ditadura e busca dos restos mortais e registros de óbito, conforme a luta de Eunice Paiva narrada durante a maior parte da trama, que vinha sendo filmada desde meados do ano anterior — não por acaso após a derrota presidencial do defensor da ditadura.
● Ainda Estou Aqui estreou em novembro de 2024 e, no mês seguinte, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Flávio Dino utilizou-o em argumentação para defender a tese de que a Lei da Anistia não pode ser aplicada em casos de ocultação de cadáver, como aconteceu com Rubens Paiva.
Pelo argumento do ministro da Suprema Corte, tal prática é crime permanente que causa dor irreparável às famílias de quem vivenciou e vivencia a experiência. A proposta pretende estabelecer uma jurisprudência sobre a questão e passa para o plenário do STF para determinar se seguirá repercussão geral em casos do tipo.
“O filme tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, justificou Dino.
Logo após superar Nicole Kidman (Babygirl), Angelina Jolie (Maria Callas), Kate Winslet (Lee), Tilda Swinton (O quarto ao Lado) e Pamela Anderson (The Last Showgirl), pelos votos de 334 jornalistas estrangeiros, Fernanda Torres aumentou em um milhão seu número de seguidores nas redes sociais.
Nas horas seguintes à premiação, ela foi mencionada 730 mil vezes nas redes no País, o filme recebeu 2,5 milhões de comentários e as buscas por Globo de Ouro cresceram em quase 50%.
Os assuntos mais comentados eram:
● orgulho nacional (25,4%),
● marco histórico (25,1%),
● ditadura militar (23,2%),
● viralizou nas redes (14%)
● e clima de Copa do Mundo (12%), reforçando todos os pontos comentados anteriormente.
A reação feliz (ou empática) de suas competidoras foi outra surpresa positiva do feito. “Foi uma coisa bonita. Na caminhada que eu dei, tinha a Tilda, a Kate e a Nicole, e elas ficaram muito felizes. Elas ficaram muito agradecidas porque é um tipo de filme que elas querem fazer, papeis que elas têm interesse em fazer”, disse a vencedora.
Na expressão popular que crava fato como se escrito em pedra, “deu no New York Times”, pelo teclado da editora de cinema do jornal, Stephanie Goodman, que “nas corridas de atores, vitórias inesperadas de nomes como Demi Moore, Fernanda Torres e Sebastian Stan produziram alguns dos discursos mais emocionantes da noite e tornaram as categorias já competitivas do Oscar ainda mais difíceis de prever”.
Se no Globo de Ouro a vitória é decidida por algumas centenas de jornalistas estrangeiros, no Oscar são 10 mil profissionais da indústria a elegerem quem merece a estatueta. A lista definitiva sai no próximo dia 19.
“Não se pode chamar o Globo de Ouro de ‘termômetro’, mas a vitória dela pode ter influência em mais interesse pelo filme, em ampliar sua campanha entre os membros da Academia. Seria interessante se concentrar também nos Members-at-Large — votantes que não moram nos Estados Unidos. É um segmento que cresceu e foi importante para premiar produções como o sul-coreano Parasita, em 2019”, explica Pablo Villaça. Do lado de uma imensa torcida que se formou para Ainda Estou Aqui e para a multitalentosa Fernanda Torres, segue a esperança.