Será que o extremismo vai para o banco dos réus?
Por Vasconcelo Quadros
RESUMO
● Já são dois generais na cadeia, 27 militares indiciados e os responsáveis pela trama golpista subjugados aos rigores da lei
● A tendência é que 2025 seja um ano de fortalecer a democracia e do acerto de contas entre Bolsonaro e o Judiciário
● Ele é o último elo dos ataques à democracia a ser derrubado e está cada vez mais próximo da prisão
A tranquilidade com que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, desfilou no show dos irmãos baianos Caetano Veloso e Maria Betânia, na semana passada, em São Paulo, revela que as instituições civis não têm mais medo da cara feita ou das ameaças dos golpistas que atacam a democracia. O ministro estava cercado por um forte aparato de segurança, com homens do STF e da PM paulista, mas demonstrou que não se abalou com a reação de militares extremistas que, identificados, estão seguindo em fila indiana para a cadeia. Os sinais são de que páginas importantes da história serão viradas em 2025.
A primeira delas, embalada pelos ventos das operações que colocaram na cadeia o núcleo duro do golpismo, no qual estão dois generais, um deles, Braga Netto, o primeiro quatro estrelas preso na história do Brasil, elimina definitivamente a pretensa tutela militar da vida do País, facilita o expurgo em curso para afastar os bolsões radicais que contaminavam os quartéis e, de quebra, abre caminho para a reinterpretação da Lei da Anistia que o próprio STF manteve intocável por 45 anos.
Foi a garantia da impunidade a quem torturou, executou e escondeu os restos mortais de oponentes do regime militar que tirou da encubação o vírus do golpismo que ressurgiu com força em 2022.
A decisão do ministro Flávio Dino, considerando imprescritível e não abarcado pela Lei de Anistia de 1979 o crime de ocultação de cadáver, pode colocar no banco dos réus agentes ainda vivos que desapareceram com corpos de militantes de esquerda da luta armada. Também estimula novas campanhas de familiares, como as do ex-deputado Rubens Paiva, cujo drama é revivido no filme Ainda Estou Aqui – aliás, citado pelo ministro –, que nunca conseguiram respostas sobre entes desaparecidos nos porões da ditadura.
Dirigente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a mais antiga organização do tipo no País, o advogado Jair Krishke disse que o voto de Dino manda simplesmente que se cumpra a lei, reconhecendo que o crime de ocultação de cadáver ultrapassa o período coberto pela anistia e que seus autores continuam impunes.
Ele acha que aliada ao momento de punição de quem tentou o golpe em 2022, a decisão de Dino, que deve passar ainda pelo plenário virtual do STF para ter repercussão geral, estimula a busca pelos desaparecidos políticos e o esclarecimento, por parte das Forças Armadas, sobre o que houve e onde foram parar os corpos de 170 desaparecidos. “O ano de 1964 ainda não terminou. Criou-se agora um espaço político que deve ser ocupado para não cair no vazio. Os militares de 2022 agiram com a mesma certeza de impunidade com que deram o golpe em 1964. Agora o País sabe quem são e como agem”.
Se a Justiça brasileira tivesse punido, como se fez na Argentina e no Chile, diz ele, a tentativa de ruptura não teria ocorrido em 2022. E nem Bolsonaro teria chegado ao poder pregando escancaradamente um golpe de Estado. Seu destino como responsável pelo plano que previa os assassinatos do presidente Lula, e de seu vice, Geraldo Alckmin, está agora nas mãos do mesmo Alexandre de Moraes que encabeçava a lista de alvos a serem sequestrados e executados pelos golpistas.
Encurralado
A prisão de Braga Netto, no domingo, 15, encurrala Bolsonaro num labirinto cuja saída ficará exclusivamente nas mãos de seu ex-ministro, que teria argumento sensato, sem parecer traição, para colaborar com a Polícia Federal: nos últimos dias, tentando livrar-se, Bolsonaro tentou jogar a responsabilidade pela armação do golpe para os generais que o assessoravam no Palácio do Planalto alegando, através de sua defesa, que seu nome não consta no gabinete de crise que seria montado caso a eleição de Lula fosse anulada. Só Braga Netto pode apressar a prisão do ex-presidente. Se não fizer acordo de delação premiada, o general não terá como reduzir uma pena calculada em mais de 40 anos de reclusão e nem evitar o alongamento de uma prisão, que é a mais grave por tratar-se de preventiva.
O comportamento imprevisível de Bolsonaro é uma das preocupações da PF com a proximidade de desfecho do caso.
● Uma das hipóteses é que, encurralado como está, o ex-presidente possa tentar uma fuga ou pedir asilo a uma representação diplomática amiga.
●Há suspeitas de que tenha tentado essa alternativa ao dormir duas noites na embaixada da Hungria, em março.
● Na avaliação de autoridades, a eleição de Donald Trump, um aliado do ex-presidente, deve animar Bolsonaro a buscar apoio internacional para tentar se proteger.
● A depender do que mais for descoberto na escabrosa trama, ele pode levar a fina flor do golpismo, formada por outros cinco generais de alto coturno – Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ex-ministro da Defesa, Estevam Theóphilo, ex-chefe do Comando das Forças Terrestres e ex-integrante do Alto Comando do Exército, Laércio Virgílio, que há alguns anos está na reserva, e Nilton Diniz Rodrigues que, até ser indiciado, era comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva, lotado em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e será removido para um cargo burocrático da força em Brasília.
● Também corre risco de prisão o almirante Almir Garnier, primeiro e único da cúpula das Forças Armadas de Bolsonaro a aderir integralmente ao plano golpista.
Uma fonte da PF disse a ISTOÉ que de todos os golpistas que atuaram no primeiro escalão do governo Bolsonaro, o que oferece menos risco às investigações atualmente é o general Augusto Heleno. Pode ser por conveniência, mas ele teria mudado seu comportamento habitual, se afastado do bolsonarismo e adotado uma posição até alheia à gravidade dos crimes cometidos.
Ao retirar o sigilo dos indiciamentos, o ministro Alexandre de Moraes escreveu que Bolsonaro e os 38 integrantes da organização criminosa atuaram para “desacreditar o processo eleitoral, planejar e executar o golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito”.
Segundo o ministro, ao tentar se manter no poder, o grupo agiu “com característica de interligação entre eles, uma vez que alguns investigados atuaram em mais de uma tarefa, colaborando em diversos núcleos de forma simultânea e coordenada”.
Depois de 23 meses de investigação, a PF produziu um relatório em que afirma que “o então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito”.
Bolsonaro é o mais importante candidato à prisão em 2025, o que pode ocorrer antes mesmo de uma sentença definitiva no STF cujo desfecho refletirá inevitavelmente na formação do quadro político que estará posto para as eleições de 2026.
● Inelegível, mesmo que seja preso, ele quer repetir o gesto de Lula em 2018: manter a candidatura presidencial até o último momento e, ao que tudo indica, só abrirá mão da cabeça de chapa para o filho, Eduardo, o 02, que vem sendo reconfigurado pela direita como nome viável do clã, do PL e da direita internacional.
● Cientistas políticos avaliam, no entanto, que se estiver preso, Bolsonaro perderá o apoio na direita moderada, que se descolaria dele e ficaria gravitando em torno do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) – o nome mais forte para enfrentar o presidente Lula –, Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), Ratinho Júnior (PSD-PR), Romeu Zema (Novo-MG) ou até mesmo o coach Pablo Marçal (PRTB-SP).
● Embora tenha repetido que será candidato à reeleição como governador de SP, e mesmo desgastado por ter feito vistas grossas durante muito tempo para os métodos violentos da PM paulista, Tarcísio de Freitas é o mais requisitado pelas forças de direita, como diz o cientista Leonardo Barreto. “É provável que a direita vá em romaria a São Paulo para pressionar Tarcísio a sair candidato”.
Inferno astral
O problema da direita é que há o presidente Lula no meio do caminho.
● O petista só polarizava com um Bolsonaro forte.
● Com o ex-presidente enfrentando um interminável inferno astral, Lula pode ter mais facilidade para se reeleger, atraindo mais gente da direita e do centro com a reforma ministerial que fará em 2025.
● O presidente e seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiram aprovar no Congresso o que mais interessava ao governo para consolidar a Reforma Tributária e ajustar o arcabouço fiscal.
Agora vai atuar para ampliar a aliança para 2026, a partir do apoio à eleição do senador Davi Alcolumbre (União-AP), no Senado, e Hugo Motta (Republicanos-PB) na presidência da Câmara, numa articulação em que acomodará os padrinhos destes, os atuais presidentes das duas casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Arthur Lira (PP-AL).
No Congresso e no Executivo não há dúvidas de que a três meses da eleição, Alcolumbre e Motta chegarão ao final da disputa como candidatos únicos, o que daria ao governo estabilidade e tranquilidade para organizar a reforma ministerial e a agenda de 2026.
Um ministro ouvido sob reservas por ISTOÉ disse que se já está caracterizado como um governo de centro, Lula fará um movimento para puxar a direita para seu campo gravitacional, o que implicaria em abrir mãos de ministérios ou, ainda, numa composição em que tenha de abrir espaço para a indicação de um novo vice na futura chapa.
Lula quer repetir a chapa com Geraldo Alckmin, seu ministro da Indústria e Comércio, mas é conhecido pelo estilo pragmático.
Na primeira parte da reforma ministerial, o presidente já sinalizou que, se necessário, cortará na própria carne: ao anunciar publicamente que vai mexer na comunicação do governo, Lula queimou o ministro da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta, e praticamente tirou as chances de o PT gaúcho sair das cordas para volta a disputar o governo. Pimenta estava cotado para ser o candidato. Constrangido pelo fogo amigo, Pimenta vive o dilema da desconstrução, com seu capital político sendo reduzido sensivelmente. Ainda assim, mantém-se fiel a Lula.
O governo ainda não bateu o martelo, mas negocia nos bastidores com o publicitário Sidônio Palmeira para substituir Pimenta e dar uma sacudida na imagem do governo, investindo na comunicação digital para mostrar os feitos do governo num ano em que o presidente diz que será de colheita dos dividendos políticos.
Lula argumenta que tem um conjunto de obras importantes mais numeroso que nos dois primeiros mandatos juntos, mas que essas informações não chegam à população porque o governo não se capacitou para usar os recursos digitais de comunicação e perde feio para a extrema-direita e seu arsenal de Fake News.
Frente mais ampla
Os partidos da centro-direita que saíram mais fortes das eleições municipais, como o PSD, e MDB União Brasil, controlam nove ministérios, mas querem mais espaço no governo. Os acordos para fechar uma frente mais ampla que 2022 em torno de Lula esbarram no Congresso, mais precisamente no modelo de orçamento federal que deu a deputados e parlamentares a prerrogativa inédita no mundo de gerir mais recursos de investimentos do que o executivo, sem o ônus dos rigores fiscais, aperto monetário ou controle de gastos.
● No Orçamento deste ano, o Congresso controlou a aplicação de cerca de 52% dos R$ 100 bilhões que ficaram de fora das despesas vinculadas.
● No Orçamento para 2025 já garantiu R$ 37,4 bilhões em emendas impositivas individuais e de bancadas estaduais, o que pode elevar ainda mais o montante se o patamar das chamadas emendas PIX repetir o volume de R$ 8 bilhões gasto em 2024, sem identificar autores nem destino de valores transferidos para prefeituras.
● Para aprovar o Orçamento, em vez de atender o que determinou o STF, o governo aceitou liberar R$ 4,5 bilhões apenas com o aval dos líderes dos partidos, jogando para debaixo do tapete suspeitas que têm resultado numa série de prisões pela PF em várias regiões do País – como na Bahia, na última semana do ano – por desvios de dinheiro de emendas.
● O Congresso resiste em atender as determinações do STF por transparência e rastreabilidade, acusa o governo de combinar o jogo com Dino e usará as emendas como moeda de troca para apoiar Lula.
Governo e STF se preparam para um aumento de temperatura no Congresso depois que Bolsonaro se tornar réu ou acabar cometendo um erro que justifique uma prisão preventiva.
Em 2023 e 2024, mesmo fazendo grandes bancadas no Congresso, a extrema-direita forçou a barra para desgastar Alexandre de Moraes e Flávio Dino. Ao que tudo indica, vão insistir na tentativa de colocar na pauta do Senado um pedido de impeachment de algum ministro do STF para forçar um acordo pela anistia de Bolsonaro e dos extremistas que invadiram e depredaram os prédios do STF, Congresso e Palácio do Planalto.
O ano de 2025 mal está começando, mas já é possível vislumbrar que será um ano de acerto de contas com o extremismo criminoso e de grandes mudanças no cenário da política nacional.