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Como os Kids Pretos, agentes das Forças Especiais, caíram na tentativa de golpe

Saiba como o ex-presidente Jair Bolsonaro, agora indiciado, cooptou, usou e depois, como é de seu feitio, descartou a mais treinada tropa do Exército, os Kids Pretos, na covarde e insana tentativa de golpe

Crédito: 1º SGT SIONIR

Nem a tropa mais preparada do Exército escapou do toque de midas às avessas de Bolsonaro (Crédito: 1º SGT SIONIR)

Por Vasconcelo Quadros

Encalacrado no labirinto judicial, agora como indiciado, o ex-presidente Jair Bolsonaro está se despedindo da política no mesmo estilo terra arrasada que marcou sua trajetória militar: o desmonte dos órgãos públicos. Nem a tropa de elite do Exército escapou de seu toque de midas às avessas. Ele cooptou, usou e depois descartou os agentes das Forças Especiais, os chamados Kids Pretos, que se desviaram da missão institucional para atuar na linha de frente do golpe, monitorando e planejando os assassinatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

Homens capacitados e altamente treinados para operações sigilosas começaram a entrar no governo em 2019 pelas mãos do tenente-coronel Mauro Cid, também Kid Preto. Mas só se envolveriam nas operações escabrosas sob as ordens do general de brigada Mário Fernandes, linha dura que chefiou as Forças Especiais e, entre 2020 e 2022, seria secretário-executivo do então ministro da Secretaria Geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, todos originários do mesmo núcleo.

O general linha dura Mário Fernandes (à esq.) envolveu os Kids Pretos na trama (Crédito:Isac Nóbrega)

● Com um efetivo de 2,5 mil homens, divididos entre batalhões em Goiânia e Rio, os Kids Pretos participam de operações que raramente ganham visibilidade ou só são reveladas anos depois da ocorrência, incluindo as de extermínio, estilo característico dessa tropa criada na ditadura para dar suporte contra oponentes.
● No governo Bolsonaro, se deixaram manipular uma vez mais pela extrema direita.
● Uma das operações terminou no massacre de militantes do PC do B entre 1973 e 1974, na Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará, onde os agentes das tropas especiais mataram em confronto, prenderam e depois entregaram para execuções frias, no meio da mata, 41 dos 67 guerrilheiros mortos no conflito.

“Tá na cara que houve fraude, p**. Tá na cara, não dá mais pra gente aguentar esta
p…, tá f**. Para divulgar e inflamar a massa. O clamor popular, como foi em 64”
General Mario Fernandes, em áudio revelado pela PF

Treinados para ações urbanas e rurais complexas, com instruções de guerra na selva, os Kids Pretos, assim apelidados por usarem boina preta, surgiram em 1968 quando o regime militar se organizava para dar o “golpe dentro do golpe”, que viria em dezembro daquele ano com a edição do AI-5. Sem se envolver em conflitos externos desde a Guerra do Paraguai, precisava de grupamentos especializados para combater o inimigo “comunista” interno. Nascidos com a criação do 1º Batalhão de Forças Especiais, no Rio de Janeiro, os Kids carregam no DNA o instinto selvagem de um grupamento treinado para matar, o que não deixa dúvida do que são capazes seguindo ordens de comandantes desequilibrados.

No relatório final das investigações sobre a tentativa de golpe, a Polícia Federal (PF) frisa que o grupo funcionou como longa manus de Bolsonaro e, com o conhecimento deste, deu prosseguimento ao “plano criminoso” executando uma série de atos clandestinos entre o final do segundo turno da eleição de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, com os ataques coordenados aos prédios do STF, Congresso e Palácio do Planalto, dos quais o ex-presidente “tinha plena consciência e participação ativa”.

O relatório ressalta que, dentre as ações que seriam realizadas “pelos Kids Pretos” que aderiram ao intento golpista da Operação Punhal Verde Amarelo, dentro de um plano chamado Copa2022, elaborado e impresso no Palácio por Fernandes, estava a eliminação física da chapa eleita em 2022.

A ação foi abortada porque o ex-presidente não conseguiu a adesão dos comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Araújo Júnior. Os dois ouviram Bolsonaro explicar o plano golpista, que consistia inicialmente na decretação de estado de sítio ou de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas se recusaram a aderir.

Segundo a PF, os Kids chegaram a elaborar um plano de fuga de Bolsonaro em 2021, quando o então presidente fez uma série de ataques a Moraes e depois, como é de seu perfil, ficou com medo de ser preso. Há relatos de conversas chorosas ao telefone com próximos. Esse mesmo plano foi posto em execução em 30 de dezembro de 2022, quando, frustrado o golpe, o ex-presidente fugiu do País para evitar a prisão. A PF ressalta no relatório que Bolsonaro não só foi a figura central da trama golpista como dela participou ativamente: “Os elementos de prova obtidos ao longo da investigação demonstram de forma inequívoca que Jair Bolsonaro planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa”.

O Kid Mauro Cid é o homem por trás de todos os núcleos golpistas de Bolsonaro (Crédito:Brenno Carvalho)

Caos provocado

O então presidente e seu ex-chefe da Casa Civil e ex-candidato a vice, Walter Braga Netto, também sabiam, segundo a PF, do plano de Fernandes para matar Lula, Alckmin e Moraes. Os Kids Pretos assumiram um papel de relevo no golpe frustrado a partir da reunião de 12 de novembro, na casa de Braga Netto, data em que as ações clandestinas foram apresentadas e planejadas. Deveriam eclodir no dia 12 de dezembro, durante a diplomação de Lula e Alckmin, com a invasão da PF, distúrbios na Esplanada dos Ministérios e colocação de uma bomba num caminhão carregado de querosene de aviação estacionado no aeroporto de Brasília. “O emprego dos Kids Pretos seria preponderante para o êxito do Golpe de Estado.”

A PF encontrou com o coronel Flávio Botelho Peregrino, assessor de Braga Netto, um documento escrito à mão descrevendo a anulação das eleições e o emprego de tropas militares na execução do golpe. No desenho, feito numa folha de papel, o autor escreve: “Lula não sobe a rampa”. O relatório final reproduz também mensagem enviada ao tenente-coronel Sérgio Cavaliere, indiciado no inquérito, indicando que tanques da Marinha estavam “prontos” para o golpe.

As provas mostram que eles atuaram em duas frentes. Numa delas para pôr em prática atos que pudessem recrudescer manifestações e pressionar os integrantes do Alto Comando do Exército a aderir ao intento golpista, dando suporte para que Bolsonaro assinasse o decreto que anularia a eleição. Na outra, com o plano operacional para prender ou matar Alexandre de Moraes.

A ação seria executada por um seleto grupo de seis Kids Pretos no dia 15 de dezembro de 2022. Acabou sendo abortada quando o ex-presidente percebeu que Freire Gomes e a maioria dos generais do Alto Comando eram contra e poderiam até prendê-lo no Palácio. Sem a adesão do Exército, só contava com o apoio do almirante Almir Garnier, comandante da Marinha, que colocou tropas, tanques e fuzileiros navais à disposição do golpe.

Não à ruptura

A essa altura, cinco generais avisaram, sem alarde, que não haveria ruptura, desestimulando os golpistas. São eles:
● Tomás Paiva, hoje comandante do Exército,
● Richard Nunes,
● Valério Stumpf,
● André Luís Novaes Miranda
● e Guido Amin Naves.

Eles passaram a ser atacados nas redes sociais num movimento comandado pelos mesmos Kids Pretos. Eram chamados jocosamente de “melancias”, verdes por fora mas vermelhos por dentro, como se fossem comprometidos com o “comunismo”, bobagem que os celerados ainda repetem nas redes.

A PF enfatiza que toda a narrativa sobre a possibilidade de fraude através das urnas eletrônicas escondia uma estratégia de Bolsonaro para dar base ao golpe e afastar interpretações de que a narrativa pudesse ser interpretada como “atos casuísticos” depois da derrota nas urnas.

Indiciado com outros 36 golpistas assim que a ação penal, precedida pela denúncia da PGR, for aberta, Bolsonaro será processado nesse caso por tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. Somadas, as penas podem chegar a 28 anos de reclusão, o que significa que, se já está inelegível, a provável condenação pode ser também uma sentença de morte política.

Polícia Federal escalou sua equipe de ponta para efetuar as prisões dos golpistas (Crédito:TheNews2)

A PF não encontrou provas, ao menos por enquanto, de que outro Kid Preto quatro estrelas, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria Geral da Presidência até o final do governo Bolsonaro, tenha se envolvido diretamente na tentativa de golpe. Mas deixou registrado no relatório que no dia 7 de dezembro, mesma data em que Bolsonaro estava reunido com Freire Gomes, Almir Garnier e o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, discutindo a minuta do decreto, o general Mário Fernandes mandou a ele uma sugestiva mensagem de áudio. “Kid Preto, falei com o Renato (…), o decreto é real, foi despachado ontem com o presidente. É Movimento, eu tô de olho aqui, se for o caso eu aciono o senhor pra voltar. Força!”

Em outro momento, em um áudio revelado pela PF, disparou: “Tá na cara que houve fraude, p**. Tá na cara, não dá mais pra gente aguentar esta p…, tá f**. Para divulgar e inflamar a massa. O clamor popular, como foi em 64”.

Bolsonaro teve um desempenho mediano no Exército.
● O apelido, Cavalão, deixa poucas dúvidas sobre o fascínio pelos Kids Pretos.
● Nas duas vezes em que tentou ingressar na tropa, foi barrado. Não passou no teste de aptidão cognitiva.
● Admitiu pela primeira vez, numa entrevista na segunda, 25, que discutiu e analisou os textos que a PF chama de minuta do golpe, mas depois desistiu por não enxergar respaldo dentro das “quatro linhas da Constituição”.
● A explicação é uma pérola surrealista do mundo paralelo em que vive.

O relatório tem evidências na contramão da fala. Bolsonaro era figura central. Ordenou, planejou, tinha ciência de tudo, inclusive do macabro plano para matar opositores. Pressionou chefes militares a aderirem e, como até as pedras sabem, passou quatro anos espalhando fake news sobre uma inexistente fragilidade das urnas eletrônicas. Atos de exceção “dentro das quatro linhas” é outro delírio: em eleições limpas não existe nada a fazer a não ser reconhecer derrota.

Freire Gomes, do Exército, ouviu o plano golpista e adiantou que não iria aderir (Crédito:Alan Santos)

As declarações de Freire Gomes e Batista Júnior demonstram que, se Bolsonaro não levou em frente a obsessão pela ruptura, foi porque se deu conta de que, sem respaldo militar, poderia não ter tempo de fugir para os EUA, como fez em 30 de dezembro de 2022.

O que se viu na ausência de Bolsonaro foi a última reação dos Kids Pretos.
● Do acampamento em frente ao Forte Apache, QG do Exército na área militar de Brasília, os golpistas tramaram a derradeira tentativa de criar o caos, organizando de surpresa o ato de 8 de janeiro.
● Os Kids aparecem com os rostos cobertos na cúpula do Congresso comandando a invasão.
● De 30 de outubro a 8 de janeiro, participaram de todos os episódios e insuflaram os apoiadores de Bolsonaro a partir para o ataque a prédios públicos.

Segredos tenebrosos

A convocação desses agentes começou a ser alimentada com as visitas de Bolsonaro ao Comando de Operações Especiais do Exército (COPESP) no segundo semestre de 2022. Foi lá que conheceu, em 2020, Fernandes, que chefiou o Copesp e depois incharia a estrutura de assessoramento do Palácio do Planalto com uma overdose de Kids Pretos, 12 deles indiciados, cinco dos quais presos.

Pouco antes de encerrar o governo, Bolsonaro nomeou o Kid Mauro Cid para chefiar o 1º BAC, ato anulado na gestão Lula pelo atual comandante do Exército, Tomás Paiva. Cid é o homem por trás de todos os núcleos golpistas, arquivo vivo dos segredos tenebrosos que ainda cercam o “mito”. Não por acaso sua delação está sendo mantida em sigilo.

A LENTA SANGRIA DE BOLSONARO
Paulo Gonet, da PGR, deverá denunciar o ex-presidente em 90 dias. Caso do golpe deverá ser decidido até final de 2025

Garnier (à dir.) colocou tropas, tanques e fuzileiros à disposição do golpe (Crédito:Alan Santos)

O Relatório de 884 páginas da Polícia Federal sobre o qual o Supremo retirou o sigilo não traz, como se imaginava, a representação pela prisão de Bolsonaro e dos generais que o ajudaram a tramar o golpe. Motivos não faltam: o ex-presidente abriu mão da defesa técnica, mas vem exagerando nos ataques ao Judiciário, numa clara tentativa de usar a política para insuflar seus apoiadores contra as investigações e o STF. Essa ofensiva poderia ser caracterizada como obstrução de justiça.

A discussão ficará em banho-maria até fevereiro do ano que vem, quando o procurador Paulo Gonet deverá denunciar o grupo ou, numa hipótese improvável, arquivar o inquérito. Até lá, Bolsonaro vai sangrar. Inelegível e indiciado, não terá força política nem tempo para lutar pela anistia a si mesmo, candidatura em 2026 e nem mesmo pensar em outro tema que não seja se defender e tentar evitar a prisão.

Como já é consenso entre os órgãos do Judiciário evitar que processos contaminem as eleições, o caso da tentativa do golpe será decidido até o final do ano que vem. O inferno de Bolsonaro será o paraíso do centro-direita, que já se movimenta para arrebanhar os órfãos do extremismo.

A POLÍCIA FEDERAL NA ERA DA IA
Com doutrina moderna, tecnologia e bons quadros, PF se coloca “entre as melhores do mundo”, afirma o diretor-geral Andrei Rodrigues

Rodrigues aposta em autonomia de investigação, qualidade da prova e responsabilidade na PF (Crédito:Sergio Lima)

Criada na ditadura como polícia política, a Polícia Federal se sacudiu, evoluiu e é hoje, além de ilha de excelência em matéria de investigação, uma garantidora da ordem democrática.

Em 21 meses ela elucidou e entregou ao STF um inquérito completo sobre a trama orquestrada para anular a eleição de 2022, matar autoridades e manter Bolsonaro no poder.

À ISTOÉ, o diretor-geral Andrei Rodrigues, disse que equipada, inserida no mundo da tecnologia e da investigação digital, com material humano de qualidade e agindo numa doutrina moderna, o DPF se colocou “no patamar das melhores do mundo”. “Todos os inquéritos são digitais. A Inteligência Artificial é uma das ferramentas que empregamos, aliada ao grande investimento em capacitação de servidores”.

O delegado ressalta que as operações seguem o trinômio “autonomia da investigação, qualidade da prova e responsabilidade”, como se viu na Operação Contragolpe. “Tenho certeza de que, além da melhoria do sistema de justiça criminal que um trabalho dessa qualidade produz, há também um efeito profilático, que aponta para toda a sociedade que o Estado brasileiro está vigoroso e responderá à altura aos crimes gravíssimos como esse”.