Cultura

Biografia desvenda personalidade complexa de Martin Luther King Jr.

Ao recusar a narrativa do herói e tratar Martin Luther King Jr. como um homem com falhas e incertezas, a monumental biografia de Jonathan Eig torna sua trajetória ainda mais impressionante

Crédito: AFP

Final da Marcha de Washington, em 28 de agosto de 1963, palco do famoso discurso “I Have a Dream” (Eu tenho um sonho): King afirmou que o evento foi “a maior demonstração de liberdade na história dos EUA”. No ano seguinte, o governo norte-americano promulgou o Ato dos Direitos de Civis, que proibiu a discriminação racial (Crédito: AFP)

Por Felipe Machado

Quem foi Martin Luther King Jr.? O ativista que se tornou mito é lembrado como um ícone da luta pelos direitos civis, um defensor da não-violência e um líder cujas palavras inspiraram uma geração. Seus discursos, como o histórico “I Have a Dream” (Eu tenho um sonho), e suas ações, como a liderança do boicote aos ônibus de Montgomery, são considerados marcos na história dos EUA e na busca pela ainda distante igualdade racial. Embora seja comum enaltecer uma figura histórica e revolucionária como King, é preciso lembrar que ele foi um ser humano, com inúmeras qualidades, mas também com falhas e incertezas. É isso que o retrato que Jonathan Eig oferece em sua monumental biografia King: Uma Vida expõe: um homem bem mais complexo e multifacetado do que a imagem idealizada que a sociedade tem dele.

● King nasceu em Atlanta, sob o nome de Michael King Jr., mas seu pai, Martin Luther King Sr., fez uma mudança ao adotar o nome do teólogo alemão Martinho Lutero.
● O jovem King cresceu em uma família profundamente religiosa. Sua mãe, Alberta, era filha de um ministro da Ebenezer Baptist Church, onde mais tarde o próprio King se tornaria pastor.
● Durante uma temporada em Boston, onde obteve seu doutorado em Teologia, encontrou sua futura esposa, Coretta Scott.
● O casal compartilhava a paixão pelo ativismo, e ela também desempenhou um papel crucial, principalmente após a ascensão do marido como uma figura de destaque.

À frente da Marcha de Washington: protestos pelo fim da segregação racial tomaram as ruas (Crédito:US National Archives / Roger-V)

O ponto de virada na vida de King veio com o boicote aos ônibus de Montgomery, desencadeado pela famosa recusa de Rosa Parks em ceder seu lugar a um passageiro branco. Aos 26 anos, King emergiu como líder do movimento e utilizou sua eloquência e força moral para incentivar a resistência, por meio de um discurso vigoroso e inspirado em sua fé cristã. Esse evento não só o colocou definitivamente no centro do movimento de direitos civis, mas também lhe conferiu um protagonismo nacional.

Com a esposa Coretta Scott: paixão compartilhada pelo ativismo, mesmo diante das traições do marido (Crédito:NTB / AFP)

Jonathan Eig, porém, não apenas celebra o herói. O autor apresenta um King profundamente humano, com falhas pessoais que contrastam com a imagem pública a que estamos acostumados a ver. Como diz o trecho: “King era um homem, não um santo ou um símbolo. Roía as unhas. Fumava escondido dos filhos. Sempre chegava atrasado para seus compromissos. Na adolescência, tentou o suicídio duas vezes, embora sem grande empenho. Traía a esposa, e com frequência, mesmo sabendo que o FBI grampeava seus telefones e punha escuta em quartos de hotel. Um desses casos amorosos durou tanto tempo que os amigos se referiam à mulher como sua segunda esposa”.

Terra prometida

Jonathan Eig também revela um King um pouco mais radical do que a imagem convencional de pacifista adepto da não-violência. No auge de sua popularidade, quando se tornou uma figura global, ele começou a se distanciar das ideias de seus aliados do movimento dos direitos civis, abraçando causas como a oposição à Guerra do Vietnã e propondo uma visão mais ampla de justiça social. Passou a defender reparações para os afro-americanos e programas de renda mínima, bandeiras que, ao menos nos EUA, eram vistas como ousadas.

King, que até então tinha sido visto como o defensor da integração pacífica, passou a desafiar o status quo de maneira ainda mais aberta. Ele não apenas criticava o racismo, mas também denunciava a desigualdade econômica e a opressão sistêmica, aspectos que estavam entrelaçados com a segregação racial e que muitos no movimento de defesa dos direitos civis haviam negligenciado. Em oposição à guerra do Vietnã, denunciou a política externa dos EUA e estabeleceu um elo entre a luta pelos direitos civis internos e a justiça internacional.

King (o quarto, da esq. para dir) e líderes do movimento civil reunidos com o presidente John F. Kennedy (Crédito:Ann Ronan Picture Library )

Além de seus feitos políticos e sociais, a biografia de Eig nos revela um King atormentado por dúvidas pessoais e um desespero que o acompanhou até seus últimos dias. Ele enfrentou uma batalha interna constante com suas próprias falhas e o peso das responsabilidades. A referência de King a uma “Terra Prometida”, onde a justiça e a igualdade racial reinariam, continua a ser uma aspiração não alcançada, mas que permanece relevante nos dias de hoje. Com sua escrita envolvente e pesquisa detalhada, baseado em arquivos do FBI só agora liberados pela Casa Branca, King: Uma Vida não apenas reinterpreta a vida de Martin Luther King Jr., mas nos oferece algo essencial: uma visão mais profunda e real do homem por trás da lenda.

King: Uma Vida: Biografia do jornalista e pesquisador Jonathan Eig (abaixo) lhe rendeu o renomado prêmio Pulitzer em 2024 (Crédito:Divulgação)
(Divulgação)