Comportamento

“A esquerda precisa tocar nos assuntos que a direita toca”, diz a chef Bel Coelho

Crédito: André Lessa

Bel Coelho: “Os homens têm muita dificuldade de serem liderados por mulheres” (Crédito: André Lessa)

Por Ana Mosquera

Bacuri, cumaru, farinha d’água, cogumelo yanomami, pirarucu. O que soa exótico para muitos a chef Bel Coelho considera primordial trazer à mesa brasileira, no prato ou em discussões: a biodiversidade, junto à questão social e ambiental. Afinal, além do buffet, das duas unidades do restaurante Cuia e do Clandestina, todos em São Paulo, ela se dedica à pesquisa e ao ativismo alimentar. Fomentar a bioeconomia e o uso sustentável dos biomas na gastronomia tem sido sua principal ferramenta para sensibilizar mais pessoas sobre as riquezas do País — e que supera qualquer PIB, como pontua, em entrevista à ISTOÉ. Sempre posicionada politicamente, Bel reafirma seus valores progressistas, mas admite a ineficiência da esquerda em dialogar com a base e a necessidade de conversa entre os espectros políticos. Depois de marcar presença na Semana do Clima de NY, a convite do Instituto Arapyaú e da Embratur, ela agora se prepara para a COP30, em Belém do Pará, em 2025, onde lançará seu livro sobre os produtos comestíveis da floresta.

O que significa um chef de cozinha participar da Semana do Clima de NY?
Significa que a gastronomia pode ser uma aliada de conservação de biodiversidade e do clima, na luta contra o aquecimento global e a favor de cadeias produtivas mais sustentáveis. Como temos muita projeção, temos um papel mais importante ainda de falar sobre o assunto, de fomentar a bioeconomia relacionada à produção de alimentos, mas também do artesanato, arte e cultura.

Além de lançar seu livro sobre os produtos comestíveis da Amazônia, o que você espera da COP30, pelo fato de ela ser no Brasil, na região da floresta?
Espero que saiam soluções. O Brasil poderia e deveria estar na vanguarda da política de clima e meio ambiente do planeta. Se levássemos a cabo tudo que a Marina [Silva] acredita como política pública para o clima, estaríamos em outro lugar, porém em todas as instâncias e esferas existe uma força para que isso não aconteça. A conservação do meio ambiente e da biodiversidade é mais democrática por natureza, porque ela favorece as comunidades, que são as guardiãs das florestas, mas isso não interessa a grandes corporações, aos sojeiros. Ainda que as comunidades movimentem a economia, a questão é o PIB. Na minha opinião, não conseguimos medir a riqueza de um país dessa forma, mas todo mundo leva esse número como o absoluto. Só que a guerra aumenta o Produto Interno Bruto, por exemplo. A comercialização, e a utilização, de carros também.

Quando você fala de “biomes to table” (dos biomas à mesa), toca em pontos como o extrativismo sustentável e o turismo de base comunitária. Como “comer a biodiversidade” e favorecer tais práticas mantêm a floresta em pé?
Quando fomentamos as comunidades, escolhemos os seus produtos. Quando queremos aquele fruto da juçara, cupuaçu ou cacau, estamos, de alguma forma, reforçando que aquele sistema funciona. Que é possível continuar produzindo, replantando, sem desmatar ou vender aquelas terras. Muitos ribeirinhos e locais acabam vendendo suas terras por um preço muito baixo e vão viver em condições vulneráveis em centros urbanos. Produzir tem que ser atrativo, o dinheiro precisa voltar para essas pessoas.

“O Brasil poderia estar na vanguarda da questão do clima. Se levássemos a cabo o que a Marina [Silva] acredita como política pública, estaríamos em outro lugar” (Crédito:Ton Molina)
E como o chef de cozinha ajuda a romper preconceitos, sem cair em uma exotização das pessoas e territórios?
De forma respeitosa, dando valor a essas pessoas e contando quem elas são. Porque a população, em geral, não está preocupada com a Amazônia. Acho que até por exotizá-la ela fica tão distante. Precisamos criar empatia pela floresta por meio das histórias humanas. Eu acho que tem que tornar pop, interessante, usar esses produtos, trazer para a mesa do brasileiro. A viabilidade disso é mais complexa. Precisa de mais fomento para que os produtos cheguem aos grandes centros, onde há demanda. Claro que existe o problema do deslocamento, mas o índice demográfico é maior nesses espaços, então há chance de se consumir mais.

Quais os perigos da extinção cultural dos alimentos, além da ambiental?
Ela pode contribuir para a extinção ambiental, e vice-versa. A industrialização da alimentação e a destruição do meio ambiente se retroalimentam, assim como acontece com a cultura e os manejos sustentáveis, se forem resgatados. Na Semana do Clima, você vê muito dinheiro envolvido e que já tem empresas gigantes olhando para isso. Nós teremos que dialogar com a direita e até o “agro ogro”. E, ao fazer isso, mostrar o quanto tudo está sendo negativo para eles mesmos, em termos de clima, de secas a enchentes severas. Em Porto Alegre, mais do que os eventos climáticos, foi o desmatamento que fez com que a água não escoasse.

Você sempre teve um posicionamento político muito claro, e agora está falando mais no diálogo. O que mudou, nos últimos tempos?
Eu falo no diálogo há muito tempo, mas continuo radical, achando que o melhor seria parar de produzir soja ou carne como fazemos. O que mudou foi a ineficiência da luta. Ficamos falando só para nós mesmos, não só em assuntos ambientais, mas na pauta dos costumes, de gênero, raça, classe. A esquerda precisa tocar nos assuntos que a direita toca. Na verdade, a maior parte das pessoas não pensa coletivamente. Enquanto o Guilherme Boulos e a Tabata Amaral tinham um sonho de cidade, o Pablo Marçal tinha um discurso individualista de prosperidade. Nós vamos ter que nos reinventar na narrativa, não necessariamente nos valores.

O seu bisavô, Oswaldo Aranha, ficou conhecido por colocar o Brasil no cenário internacional, e você coloca o País nesse lugar, dentro da sua área. Como as questões políticas e sociais eram tratadas na sua casa?
Falava-se muito sobre política, e mesmo o meu pai, que não é Aranha, sempre se interessou pelo assunto e trabalhou com figuras importantes do PSDB, como o Mário Covas. Era um assunto intenso na casa dos meus avós, pela família da minha mãe ser toda de diplomatas e ter o peso desse homem, que acredito que pensaria, hoje, na justiça social. Óbvio que havia as questões da época, que certamente eu estaria discutindo com ele, meu avô e meu pai. Mas na minha casa não tínhamos medo de discutir. As pessoas têm medo de conflito, eu não tenho. Também não tenho medo de errar e assumir meus erros, ou mudar de opinião. Eu gosto de política, acho que não se faz nada sem ela e que não podemos deixar de participar do debate público, apesar de ser cansativo.

Na sua casa, hoje, você realiza reuniões com grandes nomes do cinema, da música, do jornalismo, da academia. Você se considera uma agitadora cultural? Acha que o ativismo de redes limita a construção política e social?
Nunca tinha pensado nisso, mas acho que não. Para isso eu precisaria proporcionar eventos públicos, não encontros culturais, apenas. Mas eu acho que os encontros presenciais são o que realmente alimentam. O restante gera mais lacração e ansiedade, lacração e depressão, do que de fato uma mudança, falando do campo progressista. Ao contrário da direita, que consegue tudo por meios das redes, nós não aprendemos. Por ser direta e ter um discurso simplista, e muito dinheiro, ela nada de braçada no digital, e nós, não. Nós somos melhor no corpo a corpo.

O que falta para termos uma sociedade politizada, pensando na educação?
Temos que falar sobre alimentação nas escolas. Fazer com que a criança coma bem leva tempo e dá trabalho, e é muito mais fácil dar um industrializado, que ela vai adorar. Por isso eu não julgo as mães, e acho que a escola deveria ajudar nesse sentido, por meio de políticas públicas, além de levar a sério as leis de orgânicos e da compra de produtos dos pequenos agricultores. As políticas públicas de abordagem da história e cultura afro-brasileira e indígena também precisam ser levadas a cabo, desde a educação infantil. As crianças não entendem o preconceito, mas absorvem estruturalmente o racismo, a misoginia, o sexismo. No campo progressista, acho que os trabalhos de base precisam ser feitos, nas comunidades e periferias. Muitas vezes eles só acontecem durante as eleições, enquanto a Igreja está lá o ano todo, fazendo um trabalho constante, de acolhimento, gerando entretenimento e cultura. A Igreja virou tudo. Não podemos virar as costas para isso.

“O João Moreira Salles, em Arrabalde, dá a dimensão do motivo de a Amazônia estar nesse lugar desconhecido, assim como as outras florestas e biomas” (Crédito:Divulgação)

Por falar em indígenas, como trazê-los para o centro da mesa contribui para que pautas como a do Marco Temporal ganhem um debate mais amplo?
Acho que traz empatia por esses povos, que muitas vezes as pessoas enxergam como floresta e não seres humanos. E, ao invés de aproveitarmos para aprender com sua visão de mundo, que é muito sábia, nós chegamos de forma vertical, dizendo o que eles precisam, o que eles querem. Como influenciadora, o que posso fazer é dar espaço, falar do que eles produzem, não só em alimentação e artesanato, mas nas artes visuais, literatura, política, antropologia, história. Eu não furo a bolha política, mas sou escutada pelas elites. O fato de ser da elite, mas não ser uma intelectual, talvez me aproxime, de alguma forma.

O Brasil nunca esteve tão na moda. Quais são alguns dos atores que te inspiram a conhecer o País?
A Neide Rigo é a maior! Há a escritora e comunicadora guarani Geni Núñez, que considero uma gênia da percepção psicanalítica e linguística, da comunicação não-violenta. Tem ainda a Patty Durães, a Bianca Santana, a Eliane Brum e o João Moreira Salles, com seu livro Arrabalde e todos aqueles textos sobre a Amazônia e a maneira que enxergamos a floresta por muitas décadas, como se fosse um monstro. Ali ele dá a dimensão do motivo de ela estar nesse lugar desconhecido, assim como outros biomas.

Como feminista, você privilegia a leitura, a parceria e a escuta de figuras femininas. Por que isso é importante?
Quando estou numa mesa com várias mulheres, eu sinto tudo mais produtivo, menos autocentrado. Elas são coletivistas. Acho que temos que ter os homens como aliados, há uma força masculina que é essencial na construção das sociedades. Mas ainda enfrentamos muito machismo. Os homens têm muita dificuldade de serem liderados por mulheres, e esse é o maior machismo que eu já vivi ao longo da minha carreira. Além do assédio sexual, de maneira infindável.