Editorial

A sombria volta de Trump

Crédito:  Brian Snyder/reuters

Carlos José Marques: "Vexame lamentável para os EUA que se vangloriavam de um plantel de estadistas democratas sem igual" (Crédito: Brian Snyder/reuters)

Por Carlos José Marques

Soturna, disputada, complexa, aguardada sem igual, a eleição norte-americana para escolher o novo homem mais poderoso da Terra carregava, dessa feita, um ingrediente ideológico adicional: pela primeira vez, os EUA estavam julgando o extremismo doentio e repulsivo do republicano Donald Trump, que passou quatro anos assombrando o mundo – e principalmente seu país – com pregações de ódio, incitação à violência, xenofobia e racismo. Trump foi o retrato maior da anomalia de gestões radicais que têm se alastrado por inúmeros países, Brasil incluído. No inesquecível ciclo de um primeiro mandato, que pareceu uma eternidade, Trump pregou a supremacia branca, a conflagração, a mentira como arma de poder, o negacionismo diante da pandemia, o egocentrismo, o desprezo às minorias, aos imigrantes e a esculhambação sem freio de supostos adversários, completando o repertório com um descarado estímulo ao neonazismo. No conjunto e no todo, o pacotão de retrocessos da era Trump conseguiu por um hiato de tempo estraçalhar, um a um, os pilares regentes de um Estado Democrático de Direito, fundamentalmente o da nação norte-americana que, ao longo de séculos, havia virado referência das liberdades individuais, modelo civilizatório e de congraçamento dos povos. Trump foi um meteoro demolidor, capaz de alterar o ciclo do planeta.

Não será esquecido, pelo que fez de pior. Não se absteve de exibir, como traços latentes da personalidade, o machismo, a misoginia, a crueldade contra crianças, pobres e desamparados, em todas as circunstâncias possíveis. Fracassou fragorosamente quando seu povo mais precisou dele, no combate ao coronavírus, legando um país que gerou pobreza, desemprego e falência de empresas, mais do que em qualquer outro tempo. No esplendor de suas fanfarronices típicas, o republicano quis colocar em xeque o sistema eleitoral americano, ameaçou autoproclamar-se vencedor na marra e acabou, como previsível, tentando levar a disputa para o tapetão. Característico de mandatários autocratas. E agora é esse mesmo personagem que retorna ao poder com sede de vingança e ares de perseguição. A trajetória de Trump até a retomada da Casa Branca é inédita na história da nação. Um presidente que não conseguiu a reeleição, que foi condenado por crimes e passou quatro anos sobre o tacape da polícia, em investigações variadas que vão de estupro a desvio de documentos oficiais, conquistou de novo o voto popular e, criminoso ou não, deverá de sua cadeira comandar o mundo. Trump se converteu na aberração das aberrações e não faz a menor questão de se livrar dessa pecha. Nesta edição, desde o início, a corrida eleitoral nos EUA pareceu a disputa de um candidato só contra ele mesmo. Inicialmente frente a Joe Biden e depois diante de Kamala Harris, mesmo em uma disputa mais renhida. O plebiscito do inefável bilionário acabou em aval. Em licença para delinquir. E ele deve aproveitar. Vexame lamentável para os EUA que se vangloriavam de um plantel de estadistas democratas sem igual. O fanfarrão ianque teve uma acachapante vitória nos maiores colégios, apesar dos crimes a rodo e da gestão caótica que promoveu lá atrás enquanto esteve com o manche do planeta em suas mãos. Como a potência que dirige o mundo livre vai ser guiada daqui por diante? Essa incógnita sacode o mundo. Diretrizes globais vão depender dos preceitos e orientações ditadas pelo próximo ocupante da Casa Branca. Foi sempre assim e, nas atuais circunstâncias, a situação incorpora ingredientes de riscos bem mais agudos. A falta de um comando razoavelmente equilibrado ameaça, em vários aspectos e de maneira incalculável, os destinos da humanidade. Não apenas guerras em andamento e conflitos de diversas ordens (comerciais, políticos e sociais) dependem da interferência e arbitragem dos EUA na busca por soluções. Questões de natureza financeira, fluxos migratórios e de harmonização comercial, seja na OMC como na própria ONU, contam com o voto decisivo do futuro líder americano. De sorte que um extremista de traços populistas como Trump, em um revival de poder, deve mudar a face das relações intercontinentais conforme conhecidas hoje. É um ponto de rotação complexo e temerário. Trump é a soma de pesadelos que pode colocar tudo a perder.