Comportamento

“Mais de 13 milhões de pessoas sofrem com doenças raras no país”, diz Lauda Santos, da Amaviraras

Crédito: Guilherme Vicente/divulgação; arquivo pessoal

Perda da filha doente aos 27 anos fez Lauda se dedicar a pessoas com distúrbios raros (Crédito: Guilherme Vicente/divulgação; arquivo pessoal )

Por Eduardo Marini

Um drama familiar levou a ex-secretária executiva Lauda Santos, 66 anos, a fazer da luta em favor das pessoas com doenças raras sua causa de vida. Diagnosticada aos três anos com artrite reumatóide juvenil (ARJ), a filha Laís Vargas morreu aos 27, em abril de 2016. As dificuldades para cuidar de Laís e a saudade transformaram os rumos dessa paulista radicada em Brasília. Hoje ela preside a Associação Maria Vitoria de Doenças Raras e Crônicas (Amaviraras) e é cofundadora e vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas). Em março de 2023, abriu na capital federal o Espaço Mundo Raro, para acolhimento e lazer dos pacientes. Cerca de 13 milhões de pessoas têm doenças raras no Brasil, 6,1% do total. No mundo são 400 milhões, 5% da população. Nessa entrevista a ISTOÉ, ela detalha o trabalho. “O diagnóstico errado agrava a situação dos doentes”.

Quantas pessoas com doenças raras existem no Brasil e no mundo?
Estima-se que no Brasil existam pouco mais de 13 milhões, aproximadamente 6,1% da população de 212,5 milhões. No cenário global, a Organização Mundial de Saúde, a OMS, calcula 400 milhões de pessoas, aproximadamente 5% da população mundial, ou cinco a cada cem pessoas no mundo. Esses números destacam a relevância do tema como questão de saúde pública. Cuidado multidisciplinar, políticas especificas e estratégias na linha de cuidado, para pacientes e familiares, são fundamentais.

Como se define doença rara?
São aquelas que afetam até 65 pessoas a cada grupo de cem mil. Há uma grande variedade. Entre sete mil e oito mil tipos distintos foram identificados no mundo e catalogados pela OMS. Elas são crônicas, debilitantes e muitas vezes progressivas. Podem envolver diversos órgãos e sistemas do corpo. Frequentemente são difíceis de diagnosticar, por causa da raridade e também da falta de conhecimento dos profissionais de saúde. Oito em cada dez delas possuem componente genético ou hereditário. Essa diversidade, aliada à alta complexidade, gera uma variedade ampla de sintomas, prognósticos e tratamentos. Além de sofrerem com a doença, os pacientes precisam enfrentar vários desafios, entre eles diagnostico tardio, falta de tratamentos adequados e dificuldade de acesso a medicamentos e cuidados especializados de saúde. Tudo isso causa impacto negativo direto. Representa grande carga para os sistemas de saúde em cuidados médicos e apoio psicológico aos pacientes e famílias.

Como essas doenças são divididas?
Nos últimos anos, o aumento do conhecimento sobre doenças raras tem sido impulsionado, principalmente, pelo avanço das técnicas de genética, biologia molecular e neurociência. Isso ajuda a identificar novas doenças e a ampliar a compreensão das conhecidas. Elas foram divididas em grupos. O das Doenças Raras Genéticas envolve as mapeadas por sequenciamento genético — o que era desconhecido deixou de ser. A Sindrome de Cohen, que provoca, entre outros sintomas, microcefalia, dificuldade de alimentação, atraso no desenvolvimento psicomotor precoce e mãos e pés pequenos ou estreitos, é um exemplo de doença rara definida por sequenciamento genético. Há ainda as Metabólicas, identificadas por pesquisas biológicas e as Autoimunes e Inflamatórias, como a Síndrome de Churg-Strauss, que afeta os vasos sanguíneos. E ainda as Neurológicas, muito raras, que afetam o sistema nervoso central e estão sendo identificadas à medida que a neurociência avança. A esclerose múltipla é uma delas.

Parte considerável das doenças raras provoca modificações impressionantes no corpo.
Exatamente — e algumas são devastadoras na vida das pessoas. Extremamente complexas e raras, causam transformações significativas e comprometem a qualidade de vida, sobretudo as de motivação genética. A Síndrome de Hutchinson-GIlfird, ou Progeria, de fundo genético, causa envelhecimento prematuro nas crianças, com efeitos como pele enrugada, perda de cabelo e artrose. Em resumo: a criança nasce velha. A fibrose cística afeta as glândulas exócrinas, pulmões, pâncreas e fígado, fazendo com que o paciente tenha dificuldades respiratórias severas. No Brasil estima-se que dez mil pessoas sofram dessa doença, uma das raras de maior presença no País. A Fibrodisplasia Ossificante Progressiva (FOP), hereditária e altamente incapacitante, causa a formação de ossos em locais extra-esqueléticos, como músculos, tendões e ligamentos. Aumenta o tamanho do dedo dos pés. Incide em uma a cada dois milhões de pessoas. Estima-se que cerca de quatro mil pessoas convivam com ela no mundo. O Projeto de Lei nº 5090/2020, do deputado mineiro Marcelo Aro, prevê a realização obrigatória de exame clínico para identificar a FOP.

(Divulgação)

Há doenças raras mais notadas?
Sim, em função das características adquiridas pelo corpo. O nanismo é uma delas. A hemofilia, que age no sangue, outra. Mas, como disse antes, há outras muito raras e prejudiciais ao paciente. Em outubro de 2021, exibimos, na quarta edição do Congresso Ibero-americano de Doenças Raras, realizada em Brasília, um documentário internacional sobre um paciente com a raríssima Síndrome de Moersch-Woltman, também chamada de Síndrome do Homem de Pedra, ou SHP. Ela ataca o sistema nervoso, na maioria das ocorrências, a partir dos 40 anos. A coluna vertebral vai enrijecendo progressivamente, que também atinge músculos, braços e pernas. O corpo fica literalmente duro, por isso o nome. A conscientização e o diagnóstico precoce são muito importantes. Na medida em que aumenta o conhecimento, crescem também a sensibilização, o impulso à pesquisa e a possibilidade do paciente buscar assistência.

Sua filha Laís Vargas morreu no dia 7 de abril de 2016, aos 27 anos. O diagnóstico de artrite reumatóide juvenil (ARJ), uma doença rara, veio aos três anos. Ela foi sua grande inspiração para se tornar uma ativista aguerrida da causa. Fale sobre ela.
Pois é… quando minhas lembranças chegam ao ano de 1992, trazem-me para um futuro que envolve um compromisso profundo com a causa e um esforço contínuo para promover mudanças que melhorem a vida dos pacientes afetados com alguma condição do tipo. Com tantas doenças raras, os médicos também podem ser vítimas do desconhecimento. Minha filha Laís sonhava, aos três anos, em ter uma bicicleta daquelas com cestinhas. Comprei uma e a presenteei. Ela deu poucas voltas, largou a bicicleta e começou a chorar. Reclamava de dor em um tornozelo, que inchou. Logo o outro também ficou vermelho e a coisa atingiu o quadril e os joelhos. Levei ao médico no dia seguinte. O diagnóstico: amigdalite.

Não era.
Isso. Decidi procurar um ortopedista. Achei que tinha sido alguma pancada que inflamou. Graças a Deus esse médico ficou desconfiado, colheu sangue para exame e pediu-me para dar um tempo até sair o resultado. A desconfiança dele se confirmou: o exame apontou situação positiva para reumatismo. Ele disse: “Minha missão termina aqui. A senhora deve procurar um reumatologista com urgência”. Consegui um bom e veio o diagnóstico definitivo: artrite reumatoide juvenil. Foi o começo de uma batalha comum a quase todos os pacientes de doenças raras naquele período — e em muitos casos ainda hoje: importar remédios não fabricados no País. No caso da Laís, o Solganol, chamado de Sal de Ouro. Fazia câmbio de dólares e entregava no edifício da Varig em Brasília, a comissários de bordo generosos, que traziam a medicação dos EUA. Cada dose custava 248 dólares (R$ 1,42 mil no câmbio atual). Laís tomava uma por semana. A coisa melhorou um pouco nesse sentido, mas muitas famílias, além de cuidar dos doentes, ainda precisam se submeter a situações como essa. Por isso meu ativismo, ou militância, como queiram, não significa apenas defender a causa, mas engajar-me ativamente para transformar realidades, conquistar direitos e promover avanços no tratamento e diagnóstico dessas condições. A frase que referenciava Laís era: nem tudo que é torto é errado; veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado. É parte de um poema de Nicolas Beer, escritor de Brasília.

A senhora é presidente da Associação Maria Vitoria de Doenças Raras e Crônicas (Amaviraras), além de cofundadora e vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas). Em março de 2023, vocês inauguraram o Espaço Mundo Raro, em Brasília, para acolhimento de pacientes. Comente essas experiências.
Temos várias missões e desafios. Entre outras lutas, trabalhamos por políticas públicas, acompanhamento da trajetória de pacientes e familiares, do diagnóstico até o equilíbrio do tratamento, e com estrutura de acesso aos serviços públicos de saúde. A Febrararas agigantou-se no Brasil, a exemplo do Espaço Mundo Raro, outra idealização minha, onde trabalhamos em rede. Lá, o acolhimento envolve uma cozinha experimental, vestiário para o time de futebol dos hemofílicos, uma sala multiuso, atendimento psicológico, uma horta com verduras orgânicas e rodas de conversa, entre outras atividades. Lá se vão cinco anos de grandes conquistas.

Há também iniciativas culturais?
Entre 29 de outubro e 1º de setembro, fizemos o Festival Raro de Cinema, no Cine Brasília, com apoio da Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Um sucesso. Queremos levá-lo para outros estados. Em 7 de dezembro, vamos realizar o Raro Talks (rarotalks.com.br), com dez selecionados para palestrar. No mesmo dia será lançado o livro Historias que Transformam e Desfile do Fashion Inclusivo. Não paramos. Pensamos o tema nos 365 dias do ano.

São muitas atividades.
Pois é… sou aguerrida. A palavra desistir não faz parte do meu vocabulário. Uma mãe ou outra pode achar que uma associação de pacientes deve ofertar o que os serviços públicos não entregam, mas esse não é o nosso papel. Não podemos ser responsabilizados pelo desserviço dos governos. Ter sido mãe da Laís Vargas transformou-me no que sou hoje: uma mulher multifacetada, marcada por desafios e superações, onde o amor, a dedicação e a luta diária se entrelaçam. Meu amor por Laíses, Marias e Joões é cercado de incertezas e desafios, mas imenso e eterno. As doenças raras ainda são invisíveis a muitos, mas para famílias envolvidas fazem parte da realidade diária. Não podemos mais esperar. Juntos teremos condições de transformar a vida das famílias e garantir que ninguém mais será deixado para trás. É hora de agir, fazer a mudança.