Comportamento

“Pode-se comer de tudo, mas não tudo de tudo”, diz a nutricionista e escritora Sophie Deram

Crédito: Marco Ankosqui,

Sophie Deram combate os modismos na alimentação que prejudicam a vida das pessoas (Crédito: Marco Ankosqui,)

Por Eduardo Marini

A nutricionista e engenheira agrônoma franco-brasileira Sophie Deram injetou combustível no mercado editorial brasileiro com dois best-sellers: O Peso das Dietas e Os 7 Pilares da Saúde Alimentar. Agora, ela volta à lista dos mais vendidos com Pare de Engolir Mitos – Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência (Sextante, 256 págs., R$ 48,50 e R$ 39,99 o audiolivro). Doutora em Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), pesquisadora nas áreas de obesidade infantil e nutrigenômica, Sophie, criadora do termo terrorismo nutricional, detalha neste livro os principais mitos alimentares que dificultam a vida dos brasileiros. E mostra caminhos para não sofrer com a maioria dos preconceitos e frutos de desinformação. “Terrorismo nutricional é isso: uma vez disparado, é difícil, quase impossível reverter”.

O que é terrorismo nutricional?
Lancei esse termo numa entrevista que dei em 2014 no estado do Espírito Santo. Não o uso na França porque lá, como sabemos, o terrorismo é real, e não metafórico ou figura de linguagem. Quis destacar o quanto a informação alarmante, radical, sensacionalista, sobre os alimentos está alterando a relação com a comida. As pessoas estão com medo de comer. Se eu digo, por exemplo, ‘açúcar em excesso aumenta o risco de diabetes’, nos veículos de comunicação isso quase sempre vira: ‘açúcar causa diabetes’. E aí aquela pessoa saudável, com a glicose baixa, dentro do peso, com todos os índices controlados, mas exageradamente preocupada com a saúde, deixa de adoçar o cafezinho diário com açúcar. E olhe que eu disse que aumenta o risco, não que necessariamente causa diabetes. Grande parte da mídia se alimenta desse desserviço. O nome disso é terrorismo nutricional.

Pode-se comer de tudo?
Na medicina ou na mídia, ele se comporta como fiscal – até mesmo moralista – do prato alheio. Atendo muitas, mas muitas pessoas que não são vegetarianas mas têm culpa de comer carne. Na nutrição não existe verdade absoluta, como querem fazer crer. Tudo depende de cada pessoa: idade, tipo físico, características genéticas, hábitos alimentares e de vida… De maneira geral, quando não há restrições específicas a alimentos, digo o seguinte: pode-se comer de tudo – mas, evidentemente, não tudo de tudo.

Gordura é sempre um problema?
Não quando em níveis aceitáveis de consumo. E talvez muitos fiquem surpresos: em parâmetros controlados, ela, ao contrário, é necessária. Mulheres adultas, por exemplo, precisam, em média, de ao menos 20% de gordura no corpo. Abaixo disso, ela tem dificuldade ou mesmo para de menstruar. Os hormônios femininos são em grande parte produzidos a partir da gordura. Ela ajuda a absorver vitaminas lipossolúveis, como a A. Na alimentação, em níveis aceitáveis, ela contribui para a sensação de prazer e, claro, deixa a comida mais gostosa. Além de tudo isso, a gente precisa de ácidos graxos. Evidentemente, gordura demais, sobretudo a de carne, saturada, pavimenta o caminho para inflamações no sistema digestivo e no resto do corpo. Mas vamos lembrar: é tudo, e não tudo de tudo.

Você costuma dizer que a gordura na alimentação, em qualquer nível, foi demonizada rapidamente, no modismo…
Exato – e isso gerou em várias partes do mundo, e muito fortemente no Brasil, a maior experiência de terrorismo nutricional em saúde pública. De um dia para o outro, as pessoas pararam de ingerir gordura em qualquer quantidade e a trocaram pelo exagero em outra fonte de energia: os carboidratos. Resultado: índices de obesidade mantidos em muitos pontos e crescente em outros. Uma tragédia. A gordura do abacate era demonizada. Hoje conhecemos seus componentes excelentes para a saúde e ela está na moda.

“Tudo mito. Pseudociência. Sugerem ter vindo de fonte científica mas é bobagem. Você pode comer arroz e batata. A questão vai ser a quantidade total” (Crédito:Marco Ankosqui,)

Carboidrato é prejudicial à noite? Deve-se evitar misturar duas fontes dele?
Tudo mito. Pseudociência. Sugerem ter vindo de fonte científica mas é bobagem. Você pode comer arroz e batata, por exemplo, no mesmo prato. A questão vai ser a quantidade total. Aliás, o Brasil é peculiar para isso. Misturam batata frita, purê e arroz. Feijão, arroz e macarrão. Em nenhum lugar do mundo isso ocorre (risos). Pode misturar, mas que o total não seja a maior parte do prato. Na questão da noite é a mesma coisa: não existe qualquer estudo científico que mostre aumento do efeito do carboidrato no corpo a partir de uma ou outra hora da noite. Agora, comer toneladas de carboidrato todos os dias vai engordar à noite, de manhã, à tarde…

E a dieta em que o cidadão corta todo o carboidrato?
Carboidrato é uma fonte de energia tranquila. Quando o corpo está sem ele, faz um esforço metabólico muito grande para digerir gordura. É possível viver sem ele, mas ele está na base cultural e alimentar em todos os pontos do mundo. Quando se entra em luta contra ele, o corpo pede: cadê meu pãozinho, meu pedacinho de pizza (risos)? O problema de cortar tudo é que mais de 90% vivem a recaída e voltam dilacerando carboidrato em quantidades ainda maiores. Perdi a conta há muito tempo dos casos desse tipo que atendi. Os maiores casos de repique em compulsão alimentar que vi foram de dietas low carb (baixas em carboidrato) e glúten free (livre de glúten).

Como devemos consumir os dois a três litros diários de água?
O corpo precisa de água, mas como boa parte dela vem dos alimentos, o homem precisa em média de dois litros e a mulher, de um litro e meio. Quando há atividade física ou alta temperatura a gente se hidrata um pouco mais. Mas vemos até profissional de saúde mandando a turma se entupir de água. Isso faz mal para o corpo, que precisa carregar e eliminar. Há vários casos de incontinência urinária pelo estímulo da bexiga por excesso de água de gente que bebe sem sede. Em outros casos, a pessoa, mal orientada, perde o controle sobre o corpo. As pessoas estão terceirizando coisas básicas de necessidade. Em vez de mandar no próprio corpo, deixam essa tarefa para um profissional. Terceirizam tudo, agora também com a internet. Daqui a pouco vai ter aplicativo dizendo quando ir ao banheiro fazer xixi.

Beber líquido nas refeições engorda?
Mais um mito. Fiquei assustada ao ouvir isso quando cheguei no Brasil. Refeições são acompanhadas de água e vinho, sobretudo, na Europa e em quase todo o mundo. Não é se entupir de líquido, mas, com a hidratação, a pessoa comerá menos porque vai cuidar da fome e da sede ao mesmo tempo. Entre um e dois copos todo mundo achará uma medida razoável.

Ovo todo dia está liberado?
Estudos novos e mais profundos mostram que o ovo é um dos alimentos mais completos de todos os tempos. Tem proteína, aminoácidos, gordura e outros componentes ricos. Não diria todo dia, mas a gente pode comer ovo sem culpa. Há pais — e infelizmente não são poucos — que liberam ovo para os filhos uma vez por semana no máximo. Exagero sem qualquer base científica. Todo dia? Depende da condição de cada um. Diabéticos e pessoas com problemas cardiovasculares precisam maneirar.

O bombardeio recente contra o glúten é justo?
Fora raras exceções, mais duas besteiras. Apenas 4% dos brasileiros sofrem com reação exagerada do sistema imunológico ao glúten, mas todo mundo quer dieta glúten free porque está na moda. Essa coisa passou a ser ungida há dez anos, em 2014. Há registros de que o homem come pão há pelo menos 14 mil anos, desde as cavernas do Oriente Médio. Um congresso famoso, que se chamava Gluten Free, trocou de nome recentemente. Ora, por favor… O terrorismo nutricional é isso: uma vez disparado, é difícil, quase impossível reverter.

E a lactose?
Ela é o açúcar do leite. Alguns não a digerem muito bem. Na infância, produzimos a enzima lactase, que corta a lactose em dois outros açúcares. Com a idade, a tendência é perder, natural e progressivamente, os níveis de lactase. A partir desse fato real, histórico, inciou-se uma grande bagunça em relação a um alimento tão interessante como o leite, tendo como base, sobretudo, a confusão entre alergia e intolerância. A alergia é da caseína, a proteína do leite. A intolerância, totalmente majoritária, é uma certa dificuldade de digerir a lactose, o açúcar do leite. Só que tem muito leigo — e pior: também profissional — tirando e tratando um pelo outro. A quem tem digo: nada grave. Se tomar muito leite, claro, vai sentir desconforto. Mas nada de ficar mal, risco de vida, doença, nada disso.

E o argumento de que o ser humano é o único animal que continua a tomar leite após desmamar e por toda a vida?
Claro: é o único animal que sabe conservar o seu, retirar o de outros animais, estocar e ter por toda a sua existência. Se outros mamíferos soubessem fazer isso certamente tomariam leite até mais tarde.

“Iniciou-se uma grande bagunça em relação a um alimento tão interessante como o leite, tendo como base, sobretudo, a confusão entre alergia e intolerância” (Crédito:Pexels)

Chocolate dá espinha?
Por ele só, não. Outro produto de desinformação. Fiz um capítulo sobre chocolate no livro porque o terrorismo nutricional abala os jovens nesse aspecto. O chocolate virou o vilão da pele. A ciência diz não existir uma relação direta de causa e efeito entre chocolate e espinha. A questão é que espinha na juventude é, normalmente, fruto da combinação entre tendência genética e a bagunça hormonal típica da faixa etária. Esses hormônios dão trabalho adicional ao fígado e aumentam o número de espinhas. Se este adolescente com propensão genética e descarga hormonal comer muito chocolate, certamente vai sobrecarregar ainda mais o fígado e ampliar a questão das espinhas. Mas, por questões próprias, a ciência diz que não.

A senhora come de tudo?
Aos 12 anos, tive um uma intoxicação alimentar com uma paella e preferi me distanciar desse prato. Mas como os ingredientes dele em outras preparações. De resto, como praticamente tudo. O que não como é porque meu paladar desaprova, e nunca por preconceito alimentar cultural ou de saúde.