Lavagem de dinheiro: entenda por que bets e celebridades são alvos da Justiça
Por Luiz Cesar Pimentel
RESUMO
• Prisões de artista e influencer escancaram a porta da lavagem de dinheiro no Brasil
• A prática, que no passado utilizava empresas de fachada e laranjas, hoje, em tempos de bets, se digitalizou
• A contravenção viajou para paraísos fiscais e dificulta o encontro de rastros
Mais do que o arroz com feijão ou o pão com manteiga, nenhuma combinação tem dado tanta liga no Brasil de 2024 quanto celebridades (ou subcelebridades), ostentação, condutas nada republicanas e setores, digamos, questionáveis, por onde circula muito dinheiro. A associação de todos os elementos citados acima ficou escancarada durante a semana com o pedido de prisão do cantor Gusttavo Lima, por suspeita do envolvimento em um gigantesco esquema de lavagem de dinheiro por meio de jogos online. A operação é a mesma que prendeu a influenciadora Deolane Bezerra no começo do mês — foi batizada Integration já que a integração é a terceira e última etapa da lavagem de recursos “sujos”, quando estes são reintroduzidos na economia formal para se tornarem legítimos.
As ações das celebridades são conduzidas pela Justiça de Pernambuco, que sequestrou bens de diversos alvos, como aviões, carros de luxo e bloqueio de ativos financeiros, em montante que supera os R$ 3 bilhões. Se confirmada a estimativa dos estudos e relatórios internacionais, temos nesse caso a ponta de um iceberg, já que grupos como o Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) e a ONU estimam que entre 2% e 5% do Produto Interno Bruto (PIB) global sejam provenientes de atividades de tentativa de legitimação de dinheiro ilegal — aplicando o dado ao Brasil, a quantia anual de recursos lavados varia entre R$ 200 bilhões e R$ 500 bilhões. O restante da reportagem traz um retrato do que pode se esperar do bloco de gelo abaixo da superfície na lavanderia chamada Brasil.
• No País, a ganância por lucros tão fáceis quanto exorbitantes encontrou terreno perfeito na explosão das casas de apostas, por volta de 2018.
• Até então, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão responsável pela prevenção e combate à lavagem de dinheiro, recebia por volta de um milhão de comunicações de instituições sobre operações suspeitas.
• Em 2019, esse número subiu para 3,6 milhões e bateu recorde no ano passado, com 7,6 milhões.
• Sobre os casos, a instituição, que produzira 3.178 relatórios de inteligência financeira (RIFs) há uma década, quintuplicou o número em 2023, com 16.411.
• Isso antes da exigência, que vai vigor a partir de 2025, de que os sites de apostas tenham mecanismo de checagem para prevenção contra crime financeiro.
O principal incentivo para a combinação explosiva de cobiça e sites de apostas é que as popularmente conhecidas como bets quase gabaritaram o manual de práticas de lavagem de recursos. As casas permitem ou facilitam:
• depósitos e retiradas frequentes e fracionados, que tornam mais difícil o rastreamento da origem de fundos;
• uso de identidades falsas, que permite a contraventores a criação de múltiplas contas,
• e, principalmente, criptomoedas como forma de pagamento, que garantem anonimato.
Ou seja, devido à complexidade e alto número de modalidades possíveis de apostas somado ao enorme volume de movimentações e transações financeiras, torna-se fácil a reinserção de recursos sujos no mercado formal. “Seguramente, mais de metade do lucro com jogos ilegais toma o caminho da digitalização das bets”, diz um executivo de TI, especializado em transações financeiras, que prefere permanecer anônimo.
Evolução criminal
As duas figuras-chave da teia de relações de jogos legais e ilegais e do principal método de lavagem de dinheiro no País não são Deolane nem Gusttavo Lima, mas pai e filho que possuem o mesmo nome, Darwin Henrique da Silva, e que protagonizaram a apreensão que deflagrou a Operação Integration.
• Em dezembro de 2022, policiais recolheram R$ 180 mil na sede da empresa de Darwin pai, a Caminho da Sorte, em Recife.
• Com mais de 2 mil bancas espalhadas, ele já era desde 1999 conhecido como o principal nome do jogo do bicho na capital pernambucana.
• Junto ao dinheiro, foi recolhido um caderno com, segundo o relatório policial, “anotações das apostas e dos prêmios pagos do jogo do bicho e do futebol e contabilidade de lojas físicas”.
• O que “demonstra a relação umbilical entre as duas modalidades de contravenção penal”.
O comentário policial foi preciso, além de o complemento da investigação apontar o caminho da digitalização das lavanderias financeiras brasileiras — no caso, a cargo de Darwin Filho, que foi detido na mesma operação de Deolane. O pai vem de uma época em que a operação mais costumeira entre os contraventores era a utilização de empresas de fachada ou em nomes de laranjas para esquentar dinheiro arrecadado por meios ilegais. Toda a sorte de bicheiros, donos de máquinas de caça-níqueis, bingos e cassinos ilegais utilizava o modus operandi.
A convenção era se tornarem empresários seriais, com diversos CNPJs operando regularmente, e uma ou duas empresas de comércio com faturamento astronomicamente irreal diante do quadro de funcionários ou serviços prestados. Caso fosse feita uma auditoria fiscal, o empresário teria suas empresas regulares para colocar à mesa e maquiar a própria lisura como “cidadão de bem”, e eventual ligação com uma duvidosa. Darwin Filho, por exemplo, tem sete empresas registradas em seu nome. Uma delas é a Esportes da Sorte, casa de apostas aberta em 2018 com sede no paraíso fiscal de Curaçao, no Caribe.
Banho no paraíso
Na ilha holandesa e no arquipélago de Malta, na Europa, está sediada a imensa maioria das casas de apostas. Ainda é também o destino de grande parte do dinheiro do mercado ilegal brasileiro. Desde a época em que bicheiros e donos de máquinas de caça-níqueis usavam vistosas correntes de ouro sob camisas estampadas e abertas até o peito, as duas localidades sempre foram as preferidas para prática de aplicação e lavagem de recursos.
Por isso, os negócios, que foram passando por gerações, sempre mantiveram corpos jurídicos nas ilhas fiscais. Conhecedores de todas as minúcias e brechas das legislações locais, os advogados tinham o caminho devidamente traçado quando chegou a vez de as casas de apostas abrirem suas sedes nas localidades e uma imensa porta por onde entrar a receita de atividades ilícitas no Brasil. “Lá fora, os sistemas financeiros são mais rígidos e anulam esses caminhos”, diz o executivo de TI.
Passaram a fazê-lo trilhando o caminho apontado, inclusive, pelos bancos centrais dos países onde são feitas as apostas, como o Brasil.
• Com a consolidação de uma empresa de apostas digitais, o dinheiro da contravenção é transformado em digital com a compra de criptomoedas em alguma exchange, que é a plataforma de compra, venda, troca e armazenamento do dinheiro virtual.
• De modo geral, usam exchanges entre as dezenas que operam no Brasil à margem da regulamentação (apenas 14 são legais aqui).
• O dinheiro viaja sem rastreamento ao paraíso fiscal, onde é comercializado e passa a vigorar em espécie, em caráter legal.
“Esse mecanismo é muito comum para lavagem, pois a falta de regulação das criptos facilita. É bom lembrar que a prática depende do cometimento de crime anterior”, diz Celso Vilardi, advogado criminalista e professor da FGV. “O esquema ‘e potencialmente criminoso e pode culminar no indiciamento, denúncia, decretação de prisão preventiva — com a Interpol —, condenação por lavagem de dinheiro, organização criminosa e evasão de divisas”, empilha os delitos o advogado criminalista Eduardo Maurício.
Para um mercado ilegal de estimados R$ 10 bilhões anuais, ocupado por cerca de 60% de caça-níqueis, 35% de jogo do bicho e o restante entre bingos e cassinos, é uma grande operação lucrativa. O outro drible é na legislação digital, com crash games de jogos como Aviator e Tigrinho, que respondem por metade da rede de cassinos online e estimados R$ 35 bilhões de rendimentos anuais, os operadores exportam para cá a tecnologia e importam os lucros.
Os donos da marca oferecem a utilização na modalidade white label, para que os interessados registrem um domínio próprio, utilizem o código do jogo e ofereçam ao público em troca de divisão de receitas com os criadores.
Como para operarem recebendo depósitos em pix os interessados têm que constituir uma conta em fintech ou agente financeiro que os aceite, a responsabilidade fiscal recai sobre estes e a marca pode lavar as mãos alegando nenhum envolvimento com a prática, mesmo que os tais crash games tenham sido legalizados em 2023 no Brasil e estejam em processo de implementação junto às casas de apostas.
Ligações perigosas
Esse sistema de afiliados é semelhante ao que estampou por toda a mídia os rostos de Deolane Bezerra, há algumas semanas, e o de Gusttavo Lima na que passou. Celebridades e caras conhecidas que transmitam imagem de integridade e boa-fé são procuradas pelas bets atualmente com oferta de divisão de lucros sobre a quantidade de apostadores que conseguirem atrair. “Chuto que uns 80% das bets possuem um bicheiro por trás. As que não têm são as estabelecidas fora antes de entrarem aqui, como a Bet365, Betano e 1XBet”, afirma o especialista em transações financeiras digitais.
Mesma tática vem utilizando outros contraventores na abertura do governo a empresas de apostas digitais interessadas em operar legalmente no País a partir de 2025.
Uma das 113 que toparam pagar R$ 30 milhões de outorga para obter licença é a ZEROUMBET, de Deolane, que no dia 20 de agosto bancou a quantia com a intenção de operar legitimamente. Se lida com atenção a lista, vários outros nomes fáceis nas rodas de caça-níqueis e bancas do bicho serão encontrados, simplesmente por um verniz de legalidade às atividades duvidosas dos investidores.
Na quinta, 26, o Banco Central anunciou que as bets que não pediram a regulamentação serão suspensas em 1º de outubro e não em 2025 como divulgado anteriormente.
Outra modalidade bem mais vistosa de reintegração de dinheiro sujo no mercado formal é pela aquisição e venda de bens de luxo.
• Dessa maneira foi midiaticamente apresentada a conexão entre Deolane e Darwin Filho. A influenciadora, famosa pelo relacionamento com o funkeiro MC Kevin, morto após cair da janela do quinto andar de um hotel no Rio de Janeiro, comprou do empresário um automóvel Lamborghini Urus por R$ 3,85 milhões, pagou à vista e levantou suspeita de “lavagem de dinheiro proveniente do jogo do bicho e de apostas esportivas” — a Justiça determinou o bloqueio de R$ 34 milhões de suas contas bancárias. Deolane declarou que possui rendimento de R$ 1,5 milhão por mês.
• Já no caso de Gusttavo Lima, a juíza de Direito Andrea Calado da Cruz, que decretou sua prisão, afirma que ele deu “guarida a foragidos” durante viagem de Goiânia para a Grécia realizada no avião particular do cantor, com um casal de investigados na operação: os sócios da Vai de Bet José André da Rocha Neto e sua mulher Aislla Rocha.
Herdeiro do ramo imobiliário, José André possui mais de 30 empresas em seu nome. “É imperioso destacar que Nivaldo Batista Lima [nome real de Gusttavo Lima], ao dar guarida a foragidos, demonstra uma alarmante falta de consideração pela Justiça. Sua intensa relação financeira com esses indivíduos, que inclui movimentações suspeitas, levanta sérias questões sobre sua própria participação em atividades criminosas. A conexão de sua empresa com a rede de lavagem de dinheiro sugere um comprometimento que não pode ser ignorado”, completa a juíza.
A polícia ainda apreendeu avião que pertence ou pertencia à Balada Eventos e Produções, empresa do cantor. O advogado dele afirmou que a aeronave havia sido vendida para outra empresa do dono da Vai de Bet, mas a ANAC diz que Gusttavo Lima ainda é o proprietário.
A casa de apostas chegou a patrocinar o Corinthians em contrato, já rompido, de R$ 360 milhões por três temporadas e banca o Buteco, maior festival de música sertaneja do País. Pela Balada e pela GSA Empreendimentos Ltda, o artista chegou a receber em um ano cerca de R$ 49,4 milhões da Esportes da Sorte, de Darwin Filho, e da Vai de Bet. E o envolvimento não para, já que o cantor adquiriu 25% da última em 1º de junho recente.
No domingo (22), poucas horas antes de ter a prisão decretada (já revogada), Gusttavo Lima estava no Rock in Rio posando para fotos ao lado do criador do festival, Roberto Medina. Antes da publicação da decisão, viajou para Miami, nos EUA, com a esposa, onde possui uma casa avaliada em R$ 65 milhões. De lá, telefonou para o polêmico candidato à prefeitura de São Paulo Pablo Marçal, que tranquilizou os fãs dizendo que o amigo “está bem”.
“Independentemente de sua condição financeira, ninguém pode se furtar à Justiça. (…) A riqueza não deve servir como um escudo para a impunidade, nem como um meio de escapar das responsabilidades legais. A aplicação da lei deve ser equânime, assegurando que todos respondam por suas ações. A tentativa de se eximir das consequências legais por meio de conexões financeiras é uma afronta aos princípios fundamentais do Estado de Direito e à noção de justiça”, conclui a juíza. Fica a dica para os apostadores.