Cultura

Doc sobre ‘Família Soprano’ traz desajustes emocionais e talento de sobra

Há 25 anos, David Chase revolucionou a TV com a série Família Soprano. O roteirista revela agora de onde veio sua ideia genial

Crédito: Divulgação

David Chase: rejeitado por todas as grandes redes antes de emplacar a série na HBO (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Família Soprano estreou em 1999 e imediatamente revolucionou a televisão mundial. Havia uma regra não escrita que exigia certo comportamento moral dos heróis das telas. Um assassino, por exemplo, nunca poderia ser o protagonista de um seriado, pois isso ia contra os princípios das grandes redes de TV. Era assim até o roteirista David Chase abordar a HBO, canal de TV a cabo recém-lançado, que chegava para mudar os padrões. Chase apresentou um projeto inspirado em O Poderoso Chefão, mas com uma diferença: em vez do primeiro escalão da Máfia, os glamourosos e abastados integrantes das grandes famílias de Nova York, ele queria mostrar o dia a dia dos criminosos do baixo clero, aqueles que moravam nos subúrbios de Nova Jersey, sua cidade natal.

O documentário Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano conta os bastidores da criação e desenvolvimento desse projeto. Dirigido por Alex Gibney, o longa dividido em dois episódios apresenta uma análise da produção, fala sobre a influência conceitual da série e lança um olhar profundo sobre seu criador, David Chase.

Mais do que um “making-of”, é um mergulho nas complexidades da vida do roteirista, suas influências e as relações pessoais que moldaram a série — em especial sua relação com a mãe, inspiração para a personagem Livia Soprano, mãe de Tony.

O documentário não se limita a elogios, como é comum nesse formato. Gibney habilmente equilibra a narrativa entre o sucesso de audiência e os problemas internos, incluindo os momentos de tensão nos bastidores. Isso fica claro na forma como o diretor configura a entrevista principal: Chase é interrogado em um cenário que replica o consultório da Dra. Melfi, a psiquiatra de Tony Soprano, em uma alusão à terapia — tanto de Tony quanto de Chase.

Ao conduzir a conversa, Gibney cria uma espécie de sessão terapêutica em que o criador, sempre tenso, revela sua visão pessoal e conta como sua experiência inspirou episódios e o conteúdo geral da obra.

Tony Soprano (James Gandolfini) e seus comparsas: em vez das poderosas famílias de Nova York, foco nos suburbanos de Nova Jersey (Crédito:rchives du 7eme Art / Photo12 via AFP))

Frustrações e desafios

Chase sempre se mostrou um personagem ambivalente: apesar de sua notória carranca e inicial relutância em falar sobre aspectos pessoais, ele acaba se abrindo sobre suas frustrações e desafios. Há ainda entrevistas com membros do elenco e da equipe de produção. Edie Falco, Lorraine Bracco, Michael Imperioli, Steven Van Zandt e Drea de Matteo compartilham suas memórias sobre o período, com destaque para as lembranças sobre o ator James Gandolfini (Tony Soprano), cuja ausência é sentida em todos os momentos.

São exibidas entrevistas de arquivo com o ator para preencher essa lacuna, o que dá ao documentário uma carga emocional mais intensa. No entanto, apesar da tristeza com seu falecimento, em 2013, aos 51 anos, Gandolfini não é poupado: seus problemas emocionais, que provocavam confusões e atrasos no set de filmagem, são expostos por Chase e pelo elenco sem nenhuma compaixão.

Também há informações sobre aspectos técnicos e criativos do desenvolvimento da Família Soprano, do processo de seleção dos atores às influências visuais que moldaram o estilo único da série. O que diferencia Um dos Nossos de outros documentários sobre séries de TV, porém, é mesmo a disposição de Gibney em explorar as falhas e dificuldades enfrentadas durante a produção.

Não há uma visão romantizada de Chase ou do seu processo criativo. Pelo contrário, as tensões entre o criador e sua equipe são expostas de maneira honesta. Ao final, nos mostra, sobretudo, o impacto cultural de uma série que, apesar de ter acabado há 25 anos, ainda deixa saudades.

Os Muitos Santos de Newark (2021): destaque para Michael Gandolfini (à esq.), filho do ator que foi o protagonista original (Crédito:Barry Wetcher)