A baixaria em debate: entenda como a política no Brasil desceu ao esgoto
Por Vasconcelo Quadros e Eduardo Marini
RESUMO
• A arte do exercício da política, feita com atitudes e discursos civilizados, está extinta no País
• Em seu lugar foi adotado um conjunto de atos e discursos rasteiros, violentos, instaurado com orgulho durante o governo Bolsonaro, que contamina todos os setores da sociedade
• Para quem alimenta esse esgoto não existe adversário com direito a pensar diferente: existe apenas inimigo
Impossível imaginar, em qualquer hipótese, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, intelectual refinado, desferindo uma cadeirada num adversário, ao vivo, em um debate eleitoral. Ou Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas, patrimônio histórico da esgrima política, cuspindo termos de bandido de cela como “arregão” (que se rende por medo) ou “jack” (estuprador, gíria adaptada de Jack, o Estripador). Ou Mário Covas, inquestionável reserva ética e moral, nocauteando o rival de campanha com uma cabeçada. Ou ainda Tancredo Neves, mestre maior da negociação, perguntando ao debatedor se ele “cheirou (cocaína)”. Mas, no ambiente de esgoto em que a política brasileira está atolada, subproduto dos anos de Jair Bolsonaro, nos últimos dias as cenas foram protagonizadas, na ordem, pelos candidatos à prefeitura paulistana José Luiz Datena (PSDB) e Pablo Marçal (PRTB), e os prefeitos em busca da reeleição Dr. Pessoa (PRD), de Teresina, e Ricardo Nunes (MDB), de São Paulo. São os sintomas mais recentes e deploráveis de que a arte legítima da política, feita com comportamento civilizado, debates nobres e negociações republicanas, foi extinta.
A descarga de baixaria contamina a mente de milhões, da direita reacionária do Congresso a militantes e políticos das cidades. Seguindo à risca o lema “quem pensa diferente é inimigo”, do manual de ódio que separa famílias, amigos e uniões afetivas, essa legião de sabotadores da boa convivência segue na caça de votos, vantagens e poder a qualquer preço.
“Esses tipos aparecem de forma messiânica, como salvadores da pátria, nos momentos em que surge um vácuo de poder entre a classe política desacreditada e a população em dificuldade.”
Ricardo Guedes, PhD pela Universidade de Chicago e CEO do Instituto Sensus
Na campanha presidencial de 1985, Tancredo Neves foi questionado sobre a declaração de Lula criticando sua opção de recorrer ao Colégio Eleitoral diante da derrocada da emenda das Diretas-Já. “O Lula disse que o senhor acende uma vela a Deus e outra ao Diabo”, provocou um jornalista. “Verdade, mas ao menos acendo uma a Deus”, alfinetou a velha raposa, procurando tirar vantagem do flerte do então sindicalista com os comunistas, numa época em que as disputas eram travadas com o cérebro e não a golpes de cadeira ou cabeça.
“Compete mas não ganha”
O mesmo Lula, quatro anos depois, num debate na primeira eleição presidencial da era democrática, arrancaria gargalhadas de adversários como Leonel Brizola, Ulisses Guimarães e Mário Covas ao devolver, com fina ironia, as críticas de Paulo Maluf, que apontou sua inexperiência e se apresentou como único político competente do grupo. “Maluf, você é competente porque compete, compete, compete, mas nunca ganha.”
A política não era feita em convento, mas era assim, com adversários e não inimigos, que os concorrentes se tratavam. As propostas eram valorizadas e os discursos davam o rumo do que cada candidato ou partido realmente pensavam, um estilo que deu no mais longo período democrático, mas ficou para trás e foi substituído por um novo modelo político cujo retrato se viu com nitidez no debate da TV Cultura no domingo, 15 de agosto: dois candidatos a prefeito da maior cidade do País sem propostas se atracando como numa briga de rua.
● Manipulador, provocador, leviano e irresponsável, o empresário Pablo Marçal (PRTB) é o herdeiro mais afinado do novo fascismo que eclodiu com Jair Bolsonaro na eleição de 2018, despertando a direita envergonhada, órfã da ditadura que a sociologia e os políticos percebiam, mas não souberam interpretar.
● As novas tecnologias digitais e as redes sociais que se conectam pela internet deram o tom ao novo que viceja como joio embalado pelas fake news.
● Do outro lado, José Luiz Datena (PSDB), que se notabilizou por comandar na tevê programas policiais sensacionalistas, assume a candidatura, após uma série de desistências, com um vexame por demonstrar que seu equilíbrio emocional não resiste à menor mentira de um provocador contumaz.
Marçal e Datena são o fundo do poço da política. Não há na cadeirada nada que lembre criadores do PSDB, como Fernando Henrique Cardoso, Covas, José Serra ou Franco Montoro, integrantes de uma era em extinção que ajudou a redemocratizar o País, trazendo de volta a liberdade política que o bolsonarismo e a direita tucana a reboque tentam insistentemente avacalhar. Todos, sem exceção, da geração que fazia política, disputavam, venciam mas também sofriam derrotas fortes, como Maluf e Lula, e, democraticamente, aceitavam.
Bolsonaro, não: entrou em depressão e foi buscar a cura semeando ódio e buscando apoio popular, com milhares de lunáticos acampados em frente a quartéis para tentar convencer as Forças Armadas a aderir a um golpe de Estado repelido pelos poderes institucionais e algumas forças ainda invisíveis. Agora, em um chororô infanto-juvenil, faz das tripas coração para conquistar anistia de processos em que ainda sequer foi julgado e condenado. O pensamento do “mito” se espalhou e, ainda que rache a própria direita, encontrou ressonância em centenas de personagens como Marçal, que se espalham pelo País.
Eles estão nas eleições municipais e, em especial, no Congresso, onde os espaços de negociação, antes comum na velha política, deram lugar ao bizarro e aos berros de extremistas que atuam com um olho nas vantajosas emendas parlamentares e outro no celular, para produzir conteúdo de lacração nas redes sociais.
“De Hitler e Mussolini aos dias atuais, esses tipos aparecem de forma messiânica, como salvadores da pátria, nos momentos em que surge um vácuo de poder entre a classe política desacreditada e a população em dificuldade”, explica Ricardo Guedes, PhD pela Universidade de Chicago e CEO do Instituto Sensus. “Javier Milei, na Argentina, Donald Trump, nos EUA, e Fernando Collor e Bolsonaro no Brasil são casos típicos.”
Cientistas políticos vinham alertando que a baixaria na campanha não é fato isolado. Reflete também um modelo ultrapassado de debates favorável apenas a oportunistas como Marçal e Datena, que se beneficiam da falta de legislação sobre uso da internet e usam os 15 minutos de glória em debates ao vivo para produzir o insólito conteúdo que irá alimentar suas redes sociais.
O sociólogo Carlos Melo, do Insper, disse em um programa de tevê que a política saiu de um padrão em que os candidatos pensavam no País para outro que foi rebaixado e que vem ocorrendo uma espécie de revolução sem parâmetros que a ordene nessa nova era digital. “O modelo esgotou. Há muito tempo as redes adquiriram um tom dramático.”
Pesquisas também apontam que a motivação de novos filiados ao universo paralelo da política é o ódio, a aversão a adversários e o uso maldoso da indignação social para atacar a própria democracia como modelo, o que explica a fissura social que polarizou o País, sem que haja uma luz no fim do túnel que ilumine a racionalidade política.
Não faz tanto tempo, PT e PSDB travaram uma disputa de meio século pelo poder. Havia denúncias, divergências acaloradas, mas nem Lula nem Fernando Henrique alimentaram o ódio usado como combustível pelo bolsonarismo para dividir o País.
● Lula perdeu várias eleições presidenciais para os antigos tucanos, mas foi curar as feridas e depois venceu. Nenhum dos dois deixou de reconhecer a vitória do adversário, o que tornava a democracia civilizada e atraente.
● Já o bolsonarismo é autoritário, não respeita regras, dá de ombros quando flagrado no crime, investe no caos e só aceita resultados que lhe convém. Esse sempre foi o estilo do o ex-capitão, que antes de disputar a presidência passou 30 anos no Congresso como deputado pregando o ódio, a ponto de afirmar que personagens como Fernando Henrique deveriam ter sido assassinados e que a ditadura deveria ter eliminado pelo menos 30 mil oponentes, para se igualar aos bárbaros regimes.
“Novilíngua do fascismo”
A grande pergunta que se faz é: por que o País chegou ao fundo do poço? Uma das explicações é o vazio deixado pela geração que envelheceu e saiu de cena sem abrir caminho para novas lideranças preparadas para o exercício da política nos novos tempos de comunicação, o que favoreceu o surgimento de um extremismo forte, alicerçado em grupos evangélicos que não leram e, se leram, não entenderam os textos bíblicos.
Do grupo do agro, que, diante dos extremos climáticos, quer mais leis ambientais flexíveis, para continuar degradando em nome da defesa alimentar pelo “bem” do planeta, ao dos que atuam em nome da segurança pública fazendo barulho por leis penais mais duras, sem apresentar propostas.
Mentiras são apenas locuções verbais desse idioma subvertido onde o fundamento teórico é não discutir, e sim ofender, para gerar memes e lacração.”
Francisco Teixeira, historiador e professor da UFRJ
O historiador Francisco Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), definiu o estilo da nova direita como a “novilíngua do fascismo”, mais elaborada do que a chamada fake news e incorporada aos usos e costumes da política atual. “Os fascismos induzem, conscientemente, a uma postura de produção do ódio, transformando o jogo político tradicional numa luta letal de ‘nós’ contra ‘eles’, na conhecida dinâmica de ‘amigo/inimigo.’”
Ele diz que, desde a emergência da nova extrema direita fascista, o uso constante da “novilíngua” por parte de arrivistas e aventureiros que se dizem “não-políticos”, antissistema e libertadores “empobreceu a política, o debate político tradicional e aumentou o grau de violência verbal e física nas democracias liberais. O público, desinteressado nas razões claras da inflação, do valor da mercadoria ou do aquecimento global, prefere, como num auditório de televisão, pautar-se pelo maior número de lacrações proferidas por seu candidato, pouco se importando com a comprovação e veracidade das afirmações”.
Teixeira afirma que, no Brasil, assim como nos EUA ou Argentina, o novo estilo virou a ferramenta fundamental para apontar problemas do “inimigo conveniente”. “O importante nessa nova forma”, destaca, “é usar repetidamente expressões como liberdade, pontuada por linguagem corporal agressiva e amedrontadora, que se confunde com fake news, como fez Donald Trump afirmar, diante da perplexidade de Kamala Harris, que em Springfield eles (os estrangeiros, sobretudo haitianos) comem gatos e cães.”
Ao acusar Guilherme Boulos de uso de drogas ou “ameaçar” o mesmo adversário apontando uma carteira de trabalho, Marçal adota a mesma tática baixa. “Mentiras são apenas locuções verbais desse idioma subvertido onde o fundamento teórico é não discutir, e sim ofender, para gerar memes e lacração”, aponta Teixeira.
A civilidade como bem da política e da democracia permitiu, por exemplo, momentos como o que Fernando Henrique confessou que estava emocionado ao se atrapalhar passando a faixa presidencial a Lula para o primeiro mandato do adversário de partido. “Estava mesmo. Foi emocionante e histórico passar a faixa a um ex-operário”, admitiu na ocasião.
Agora, olhando para o contexto, os especialistas enxergam perigo ainda maior no além-fundo do poço em que a política chegou: o novo fascismo pode sair vitaminado das eleições municipais, especialmente nas capitais. Triste decadência. Que o tempo — e sobretudo os candidatos — voltem a fazer bem à política brasileira.