Política

“Não é mais preciso derrubar portão de palácio para dar golpe”, diz Leonardo Trevisan

Crédito: Divulgação/ESPM

“Brasil não deveria mandar Amorim à Venezuela no momento em que observadores internacionais eram barrados”, diz o pesquisador Leonardo Trevisan (Crédito: Divulgação/ESPM)

Por Eduardo Marini

O pesquisador Leonardo Trevisan é o especialista em Relações Internacionais que melhor traduz, no País, o internacionalês, vocabulário típico da área, para uma linguagem compreendida pelo público leigo. Habilidade desenvolvida porque, além de consumir o material acadêmico de seu trabalho, ele é leitor voraz de jornais e revistas brasileiras e, sobretudo, das mais consistentes e respeitadas publicações jornalísticas do mundo. Não raro, embasa comentários com citações da imprensa internacional. Graduado em História, mestre em História Econômica e doutor em Ciência Política pela USP, pós-doutor em Economia do Trabalho pelas universidades britânicas de Londres e Warwick, Trevisan é professor titular da ESPM-SP e da PUC-SP. Nesta entrevista à ISTOÉ, ele analisa aspectos da campanha eleitoral americana, incluindo o último debate entre Kamala Harris e Donald Trump, as trapalhadas de Nicolás Maduro na Venezuela, os protestos contra o presidente Emmanuel Macron na França, o conflito entre Israel e Gaza e a Guerra entre Rússia e Ucrânia.

O que o senhor achou do debate entre Kamala e Trump?
Houve uma mudança de estratégia dos democratas. Eles sempre se apresentaram, nas eleições, com uma atitude sobranceira, elevada, às vezes defensiva, apostando em ideias e na democracia. Pela primeira vez, mudaram completamente de tática. Partiram para o ataque. Kamala entrou no debate, não esperou Trump, caminhou até ele e apertou sua mão olhando firme nos olhos, como se quisesse dizer: ‘eu não tenho medo de você’. Essa imagem pontuou o debate.

“O governo brasileiro, com a postura inicial após as eleições presidenciais na Venezuela, passou de fiador a responsável por Maduro – esse foi o erro grave” (Crédito:Pedro Rances Mattey)

Quais eram os objetivos?
Ela tinha intenção de explorar três posições. A primeira, se apresentar a um eleitor que não a conhecia — pesquisas mostravam que, até o início do debate, 28% dos americanos não sabiam seu nome. A segunda era tornar visíveis as falhas de Trump, o que ela também conseguiu. E a terceira, se desvincular da herança negativa de Biden — e nisso, por obra suprema de ironia, até Trump ajudou a acontecer. Em determinado momento, foi enfática ao respondê-lo: ‘o senhor não sabe com quem está falando; eu não sou Biden’.

Em que temas ela se saiu melhor?
A defesa do aborto como direito da mulher foi um deles. Esta eleição é dos grandes temas. O aborto é um deles e ela foi muito bem. As questões de gênero são importantes agora porque na Geração Z, que começa a tomar conta do mundo, inclusive financeiramente, Trump tem 13 pontos percentuais à frente entre os homens — e Kamala, 38 acima entre as mulheres. Isso terá peso eleitoral brutal.

E na questão do bolso? Trump teve avaliação ligeiramente melhor nas questões econômicas…
Verdade, mas Kamala foi hábil ao não mergulhar em questões técnicas e reforçar que estava preocupada com dificuldades sociais. Prometeu ajudar com US$ 25 mil (R$ 137 mil) quem estiver regularizado para comprar a primeira casa própria. Pais com crianças pequenas poderão ser ajudados com até US$ 6 mil (R$ 32,9 mil). Essas coisas tornam reais as promessas democratas de vender esperança e mudança. As pesquisas The New York Times/Siena College mostram que 61% dos americanos querem mudanças – um espanto para uma das sociedades mais conservadoras do mundo.

Ficou claro também que ela adotou um discurso mais leve e menos acadêmico…
Kamala foi professora universitária e procuradora-geral da Califórnia, o mais rico estado americano. Nos EUA, como no Brasil, existem diferenças geradas por questões regionais. Americanos do Meio-Oeste e de pontos do interior do país costumam resistir ao sotaque urbano e à postura supostamente arrogante de californianos e nova-iorquinos. Pesquisas dos democratas identificaram essas resistências, e outra, relacionada ao discurso mais refinado, essa última, inclusive, explorada por Trump sempre que pode. Essas questões foram muito amenizadas. Neste ponto, os assessores foram eficientes.

“Há duas ‘Israéis’: uma de Netanyahu, dominada por ultra-ortodoxos e contrária a acordo, e outra democrática, que deseja paz e aceita Gaza como estado palestino” (Crédito:Abir Sultan/Pool/AFP)

É possível fazer alguma previsão de resultado?
Por enquanto não.

Dos EUA para a Venezuela. O governo Lula demorou a adotar posição firme sobre o desmando de Maduro?
A posição conciliadora do Planalto nessa questão não é nova. Em outubro de 2023, o governo brasileiro foi fiador do Acordo de Barbados, atendendo EUA e União Europeia, usando a posição de governo democrático na América Latina para convencer Maduro a fazer uma eleição limpa em troca, sobretudo, da diminuição das sanções americanas. Os EUA fizeram sua parte, a Venezuela não, e o Brasil, com a postura inicial após as eleições, passou de fiador a responsável por Maduro — e esse foi o erro grave. Para usar uma expressão bem nossa, no início o Brasil tentou ficar em cima do muro. Jamais poderia ter enviado Celso Amorim, uma de suas maiores autoridades diplomáticas, para ficar em Caracas durante e nos dias após as eleições, enquanto os observadores dos outros países sequer conseguiam entrar na Venezuela. Foi uma exposição de fragilidade que deixou o Planalto em situação extremamente delicada.

A dificuldade de unificar internamente o PT numa decisão mais rígida contra Maduro influiu na demora do Planalto?
Sim, certamente. As alas mais moderadas do PT até poderiam aceitar, com ressalvas, uma posição mais dura, mas ela certamente seria alvo de críticas e descontentamento por parte dos setores mais à esquerda do partido. Para Lula ou qualquer líder político petista no Executivo, fica muito difícil contrariar, sobretudo em período eleitoral, essas alas de militância que, no fundo, tocam o partido. A bem da Justiça, é preciso lembrar que Lula disse publicamente ter achado antecipada a nota do PT saudando a reeleição e qualificando o processo eleitoral, logo após a divulgação dos resultados, de limpo e legítimo. E isso aconteceu depois da divulgação dos resultados, sem atas, pela Justiça eleitoral controlada por Maduro.

O senhor diz que golpes de Estado e projetos de perpetuação no poder não precisam de tanques para derrubar barreiras e portões e invasões de palácios. Como é isso?
Isso ocorre sobretudo nos casos em que alguém já controla o poder, seja a partir de uma eleição inicial, legítima ou aparentemente limpa, ou de um golpe armado clássico. Apenas explico, de forma simples, a teoria dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller mundial Como As Democracias Morrem. Em resumo, uma vez no poder, o líder do projeto golpista militariza os setores mais lucrativos do sistema financeiro e da sociedade civil de um país em troca de benesses, sinecuras e contratos de importação e exportação com comissões polpudas a militares graduados. Com isso, garantem proteção militar interna e externa e, às vezes, aval para a implantação de milícias paramilitares. Além disso, toma o controle dos altos tribunais das justiças civil e eleitoral, com a mesma tática de oferta de vantagens. Pronto: está montado o cenário para o golpista ter poder enquanto quiser e, obviamente, conseguir manter esses presentes a militares, cúpulas policiais e judiciárias.

É o que ocorre na Venezuela?
Exatamente.

Na França, a esquerda sentiu-se traída por Macron, que escolheu para primeiro-ministro Michel Barnier, conservador ligado à extrema direita de Marine Le Pen, que ficou em terceiro lugar nas eleições…
A ascensão da direita com feições fascistas — tenho muita cautela com essa palavra — é preocupante. Há, sem dúvida, um número cada vez maior de europeus fazendo sinais, namorando essa fase negra da história do continente. As eleições recentes na Alemanha foram vencidas pela direita com esses viés com mais de 50% dos votos em algumas regiões. Há um risco continental. Meu medo não é do fim do governo Macron, mas da encruzilhada que deverá surgir na próxima eleição presidencial. Macron não poderá mais ser candidato, a centro-esquerda, a esquerda, a centro-direita e a direita civilizadas francesas não possuem um nome de peso e… tem Marine Le Pen. Os italianos foram para a extrema-direita com Giorgia Meloni, mas se controlaram. Não, não é a mesma coisa. A Itália recebeu mais de 200 bilhões de euros (R$ 1,220 trilhão) em ajuda, em parcelas mensais, da União Europeia, via Banco Central Europeu, para financiar projetos de modernização de infra-estrutura e se permanecer bem comportada no continente unido, sem arroubos de rompimento. O amor da Giorgia Meloni pela Europa Unida resistiu intocado. Assim é fácil. Não há esse dinheiro para acalmar Marine Le Pen. E, ademais, a França não é a Itália.

Como o senhor está vendo a questão entre Israel e Gaza? Para onde vai o conflito?
Para o bem ou o mal, a agonia dos palestinos — e a própria do presidente de direita Benjamin Netanyahu — tem data para ser decidida: 5 de novembro de 2024, dia das eleições presidenciais americanas. Até lá, a situação, creio, estará resolvida. O debate entre Kamala e Trump em 10 de setembro mostrou isso. Kamala foi cautelosa, disse que respeita e ama muito Israel, vai garantir a existência do país, mas tem muito respeito pelos palestinos e, se for necessário, fará, sim, a política dos dois estados, o palestino e o israelense. Não vamos tapar o sol com a peneira: Israel é a única democracia do Oriente Médio. É muito provável que tenhamos “duas Israéis” em termos de visão da questão: uma de Netanyahu, dura, dominada por ultra-ortodoxos, contrária a qualquer acordo, e outra democrática, moderna, das statups, que deseja e sonha com a paz para poder crescer e quer entender Gaza como um estado palestino, com direito de existir. Essa segunda situação é exatamente a que se espera caso Kamala vença a eleição. Mas Netanyahu, para usar outra expressão bem nossa, não quer largar o osso. Vai continuar a fazer guerra para se manter e, se Trump vencer, suas chances de continuar no poder, embora desgastado, aumentam muito.

E a guerra entre Rússia e Ucrânia? Está tão carregada no tempo que parece tragicamente incorporada à rotina…
Exato. É muito difícil fazer qualquer previsão porque a questão está embutida nas ideias de continuidade e força da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. O risco, aqui, não é só da Ucrânia, mas de uma ideia de Europa. A eleição americana de 5 de novembro próximo também será definitiva para este caso. Kamala foi muito clara no debate em marcar sua posição pró-Ucrânia. Trump foi igualmente cristalino ao dizer que termina com essa história antes de tomar posse. Entrega a Vladimir Putin o que ele quer — os 20% da Ucrânia — e acaba a guerra. Trump busca mostrar força e proteger o território americano a qualquer custo. Kamala é adepta da visão histórica de que a Europa é aliada decisiva. Visões distintas. Esse jogo também está à espera do apito de 5 de novembro.